Ananda Viana e Maria Fernanda Maciel, doutorandas em sociologia pelo IESP-UERJ, pesquisadoras dos grupo Casa e do Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia.
Luiz Antônio Machado da Silva desenvolveu a chave analítica das estratégias de vida (1979; 1984; 2018), preocupado com a organização prática da vida cotidiana. Ele focalizou em como os processos da vida econômica tecem elos entre o trabalho e as condições de vida nas “camadas populares”, dos quais as estratégias de vida emergem. Articulando padrões de comportamento e escolhas situadas, elas são baseadas na extensão do tempo de trabalho das pessoas, não apenas de uma perspectiva individual imediata, mas também a partir do momento de seu ciclo de vida e o de sua família. Machado sugere que as estratégias representam uma resposta às condições às quais os indivíduos são submetidos pelo capital, esclarecendo que compreende que a utilização da força de trabalho é determinada em termos macroeconômicos, mas que o trabalhador administra seu trabalho e suas relações socioeconômicas dentro dos parâmetros impostos a ele. Simplificadamente, as estratégias de vida são os jeitos que as pessoas dão para satisfazer suas necessidades ligadas ao dinheiro e ao que ele pode prover. Para Machado da Silva (2018), as estratégias de vida são, em algum momento, estratégias familiares – isso porque as agências individuais dos trabalhadores são pensadas e geridas como um empreendimento coletivo do âmbito familiar. As estratégias de vida, então, estão baseadas na extensão do tempo de trabalho e nas formas de complementação da renda, o que o autor defendia como “tendências seculares” às condições de trabalho, e não apenas efeitos individuais, como desemprego, doença ou morte. Partindo da pesquisa etnográfica no Recife (PE) entre 1977 e 1978, o autor reforça as maneiras pelas quais as estratégias podem ser traçadas, considerando principalmente a combinação fundamental entre o núcleo familiar dos indivíduos e o mercado de trabalho, responsável por dar materialidade e funcionalidade para as tais estratégias. Ou seja, sua perspectiva dá protagonismo para a existência de lacunas no sistema que dão espaço para ações que permitem a garantia e manutenção de uma vida digna, tendo em vista que as pessoas têm necessidades a suprir (alimentação, contas, vestimentas, saúde, lazer), independente de que para isso tenham que exercer alguma ocupação normativamente informal. Dentre as principais formas de extensão de trabalho podemos pensar: a realização de horas extras nos casos de trabalhadores regularmente assalariados; a abertura de pequenos e médios negócios e a consolidação de um trabalho autônomo; a realização de trabalhos “por conta própria”, que podem ser mais ou menos regulares, e a conciliação de diversas formas de trabalho por conta própria, como os bicos e biscates, normalmente modelos de prestação de serviço mais irregulares; aposentados e trabalhadores sob licença por questões de saúde (o famoso “encostado”) que realizam pequenos bicos e prestação de serviços autônomos; a combinação de empregos regulares assalariados com o “auto-emprego”, uma forma de complementação à renda considerada como principal e regular; a entrada de membros da família em pequenos estabelecimentos familiares, como filhos que atuam como “ajudantes”, ou as mulheres/esposas, que conciliam o trabalho remunerado, seja assalariado e regular, seja autônomo, com as atividades domésticas e de manutenção e reprodução da vida (sobre este ponto, ver: Sarti, 1994a; 1999b); a conciliação da renda proveniente do trabalho assalariado ou do trabalho por conta própria com benefícios sociais, como o Bolsa Família, e benefícios previstos em lei, como a pensão alimentícia, pensão por morte, seguro-desemprego, aposentadoria; dentre outros. A noção de estratégia de vida encontra-se com as noções mais amplas de vida, em sobreposição à economia, como as de “ganhar a vida” e de “vidas que valem a pena ser vividas”. São as maneiras pelas quais os sujeitos e os grupos familiares encontram tanto para sobreviver ao dia a dia e complementar suas rendas, quanto para ampliar seus horizontes de expectativa e construir projetos para o futuro. As estratégias não significam uma atribuição exagerada de intencionalidade e cálculo por parte dos sujeitos. Ao contrário, demonstram que a vida acontece e que, dentro daquilo que pode ser chamado de “estrutural”, as pessoas ainda possuem margem de ação sobre seus presentes e futuros. Portanto, não se trata de conferir uma hiper-racionalidade às ações das pessoas, e sim, de restituir suas agências perante os contextos em que estão inseridas. Ganhar a vida significa mais do que subsistir. É ter margem para ordenar racionalmente não só o hoje, como também o dia seguinte e o dia que vem depois dele – ainda que seja necessário reordenar os caminhos a cada revés, quantas vezes for necessário da forma mais honrada possível. A perspectiva analítica que considera as formas de ganhar a vida repensa a economia elaborada nos termos das teorias econômicas neoclássicas (crises, investimentos financeiros, valores), observando as transformações e continuidades dos sistemas coletivos que permitem a manutenção da vida (Narotzky, Besnier, 2014). As primeiras discussões sobre a noção de ganhar a vida (Álvarez, Perelman, 2020) tomaram mais força sobretudo com as transformações do capitalismo contemporâneo, com o desmantelamento do estado de bem estar social, com a precarização do trabalho e dos setores populares, fenômenos que expõem o processo de neoliberalização das relações de trabalho e da relação com o Estado. A literatura antropológica, debruçada principalmente sobre questões relacionadas ao trabalho, economia, dinheiro, crises e setores populares, buscou, então, elaborar categorias analíticas que fossem capazes de pensar o quê as pessoas fazem para lidar com esses processos. Trata-se, pois, de perceber a agência reflexiva das pessoas ao ganhar a vida, reconhecendo-as enquanto agentes competentes: elas olham para o mundo, olham para si e decidem o que fazer – apesar e por causa das “estruturas”. O grande legado deixado pela noção de estratégias de vida é pensá-la, como salientou Machado na introdução do livro “Condições de vida das camadas populares” (1984), como um instrumento analítico com poder de sistematização. Os textos de Machado, que datam das décadas de 1970 e 1980, mostram-se potencialmente atuais quando pensamos que a noção de estratégias de vida é, em certo sentido, uma resposta às relações de trabalho no sistema capitalista, e que parte das relações entre os indivíduos em suas redes familiares sobre as alternativas aos salários insuficientes e ao, cada vez maior, desmonte das relações de trabalho regulamentados. Respostas que partem de suas agências, de seus cálculos, de suas redes familiares e redes de apoio. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio; LEITE LOPES, José Sérgio. “Estratégias de trabalho, formas de dominação na produção e subordinação doméstica de trabalhadores urbanos. In: LOPES, José Sérgio Leite et al. Mudança social no Nordeste: a representação da subordinação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, pp. 9-40, 1979. MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. Estratégias de vida e jornada de trabalho. In.: MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio; LEITE LOPES, José Sérgio. Condições de vida das camadas populares. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. MACHADO DA SILVA, L. A. O mundo popular: trabalho e condições de vida. In: CAVALCANTI, M.; MOTTA, E.; ARAUJO, M. (org.). O mundo popular: trabalho e condições de vida. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2018. NAROTZKY, Susana. Rethinking the concept of labour: Rethinking the concept of labour. Journal of the Royal Anthropological Institute, 24(S1), 2018. NAROTZKY, Susana; BESNIER, Niko. Crisis, valor y esperanza: repensar la economia. Cuadernos de Antropología Social /51, 2020.
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