Ana Priscila Alves e Maria Fernanda Maciel, mestrandas em sociologia pelo Iesp-Uerj e integrantes do Grupo Casa.
No arcabouço teórico urbano, a cidade aparece recorrentemente como um local que exerce a intermediação e atração de diversos fluxos: de dinheiro, de pessoas, de trabalho. Mas, de fato, o que constitui uma cidade ou um espaço urbano? Um elemento comum nas diversas formas de definir a cidade é a presença de um aglomerado de pessoas. Sendo assim, é possível afirmar que a reprodução da vida ou a “produção do viver” (HIRATA, ZARIFIAN, 2000) é central para a produção e manutenção das cidades. A produção do viver é todo o conjunto de trabalhos realizados para que a vida humana seja possível, como a limpeza, o preparo dos alimentos, o cuidado dos doentes, dos idosos e crianças, dentre outros. Esse trabalho é realizado majoritariamente por mulheres, de forma remunerada ou gratuita (HIRATA, KERGOAT, 2007). O trabalho das mulheres está presente em toda a cidade. Para além das tarefas reprodutivas, na busca do próprio sustento ou do sustento do lar, as mulheres estão ocupando a cidade enquanto ganham a vida: elas estão cozinhando em restaurantes, dirigindo táxis, uberes, ônibus e outros meios de transporte, dão aulas nas escolas e universidades, são médicas, psicólogas, autônomas, enfermeiras, artistas urbanas, faxineiras, vereadoras. Tendo em vista que no dia 8 de março é comemorado o Dia Internacional das Mulheres, fazendo com que todo o mês seja repleto de manifestações sobre a temática, é sobre a centralidade das mulheres para a dinâmica socioeconômica das cidades e de suas casas que o Terças de Casa desta semana busca tratar. Considerando a literatura da economia feminista, Verónica Gago sugere em A razão neoliberal (2018) que o neoliberalismo (transversal em suas realidades) não pode ser apreendido sem ter em conta como foram captadas, criadas e interpretadas as formas de vida, táticas de resistência e os modos de habitar populares que o transformaram – atribuindo, assim, protagonismo aos ‘de baixo’. Especialmente sobre as que estão “embaixo”, é evidente a combinação de distintos dispositivos da vida prática para suscitar uma vida digna para si mesmas e para os seus, muitas vezes recorrendo a ocupações de diversas naturezas - às vezes simultaneamente - frente às condições materiais que são ou podem ser uma possibilidade para elas. Vislumbrando o cenário latino-americano, Gago, então, indica um neoliberalismo ‘de baixo para cima’. Caracterizado por um conjunto de condições concretizadas para além da vontade de um governo (ou de sua legitimidade), o neoliberalismo de baixo para cima comporta as transformações dessas disposições sobre as quais opera uma rede de práticas e saberes que têm o cálculo como matriz subjetiva. Assim, funciona como motor da economia popular que mescla saberes comunitários de autogestão com o know-how[1] dos momentos de crise, expandindo-se pela organização de economias informais compostas, por exemplo, por mecanismos como o empreendedorismo popular. Em um entrelaçamento de modos de fazer, pensar, perceber e trabalhar que supõe a sobreposição de termos não reconciliados e em permanente recriação, o que está em jogo é a composição estratégica de elementos microempresariais com fórmulas de progresso popular, capacidade de negociação e a sobreposição de parentesco e de lealdade, bem como os formatos contratuais não tradicionais. Consequentemente, o caráter abigarrado disso que Gago caracteriza como economias barrocas, revela a pluralidade de formas de trabalho. Estas modalidades de trabalho não contratuais ganham força com a crise econômica, quando as pessoas buscam alternativas para sobreviver frente à instabilidade do mercado de trabalho. O exemplo mais recente é a crise pandêmica da COVID-19: segundo o IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, no ano de 2020, mais de 8 milhões de brasileiros perderam seus empregos, ao passo que houve um crescimento de pessoas ocupadas, sobretudo em na informalidade. Conforme dados divulgados pelo Ministério do Trabalho, as mulheres foram as que mais perderam empregos (95%) nesse momento. Deste modo, as mulheres foram desenvolvendo formas de ganhar a vida, muitas delas recorrendo à autoempresarialidade a partir de suas realidades, seja no espaço público ou no interior das casas. Aqui, trabalharemos dois exemplos: motoristas de transporte privado mediado por aplicativos e o trabalho de revenda de cosméticos. A Accenture[2] realizou uma pesquisa com motoristas que entraram na plataforma Uber durante o período pandêmico. No Brasil, 62% dos motoristas alegaram entrar na plataforma por não conseguirem outros empregos e 81% afirmam que o trabalho na Uber foi imprescindível para o suprimento das necessidades financeiras neste período. Apesar deste ser um ofício majoritariamente masculino (já que eles representam 94% dos trabalhadores, como aponta o último dado apresentado pela plataforma, em 2020), as mulheres seguem aderindo a este tipo de trabalho, ao passo que o aplicativo propõe medidas para atrair cada vez mais condutoras. Uma das ferramentas utilizadas pela Uber é a adoção de uma “roupagem feminista”. A empresa identifica a plataforma como uma forma de autonomia econômica, dando assim “mais condições para a mulher denunciar uma situação de violência doméstica”[3]. Alguns outros recursos também são mobilizados, como a possibilidade de colocar câmera no veículo, gravar o áudio da corrida, descontos em locação de carros para condutoras, além do dispositivo mais popular, o “U-Elas”, que, quando acionado, possibilita que as mulheres motoristas aceitem viagens apenas de outras mulheres. Apesar de, na cena da divulgação, o “U-elas” ter sido propagandeado como uma alternativa para mulheres e pessoas não-binárias, há relato de mulheres trans que não tiveram o recurso disponibilizado pela plataforma. Contudo, há no geral um sentimento de que a renda da plataforma proporciona uma maior autonomia às condutoras: enquanto 36% das mulheres em geral afirmam possuir autonomia financeira, dentre as motoristas esse percentual chega a 61%, segundo uma pesquisa realizada pela empresa. Deste modo, milhares de mulheres têm ganhado a vida num modelo tradicionalmente masculino: no espaço público e na condução de carros. Já no ambiente privado, pensando nas formas de fazer dinheiro no interior das casas (MOTTA, 2016) e de que maneira espaços como esses podem se transformar em comércio, estão as revendedoras de cosméticos por catálogo. Tradicionalmente conhecidas como aquelas que vão “de porta em porta”, seu trabalho consiste em fornecer um atendimento mais individualizado que pode ocorrer à domicílio ou no local de trabalho de suas clientes para oferecer os produtos das marcas que representam. Atualmente, essas empresas possuem diversas ferramentas[4] digitais para facilitar as vendas sem que elas sequer saiam de casa - logo, suas casas podem se tornar uma espécie de “polo” da empresa, ao mesmo tempo que elas podem passar por tantas outras levando-a consigo. Fato é que há uma tendência de trabalhadoras que quando se veem “apertadas” ou desempregadas, e precisam compor e até mesmo restituir totalmente sua renda, se voltam para formas de trabalho como a revenda e o transporte privado. Isto, considerando a (in)disponibilidade de funções no mercado de trabalho formal, a informalidade permite o acúmulo de funções em suas duplas/triplas jornadas de cuidado com afazeres domésticos e a família, além da conjugação de outras fontes de renda. Por exemplo, no caso das revendedoras, dificilmente se encontra uma que revenda apenas uma marca - o que faz com que as chances de venda aumentem de acordo com o poder de compra das clientes; a condução por aplicativos também se apresenta diversas vezes como renda complementar. Há as que vivem apenas de revenda ou das corridas, das que se consideram autônomas até as que se entendem como funcionárias das empresas em questão, porém, sem existir qualquer vínculo legal entre elas - quantidade que cresce relacionalmente às reformulações do mercado formalizado. No entanto, vale ressaltar que grande parte amalgama empregos regulares com os “extras” para complementar seu assalariamento. Ponderando que muitas delas são igualmente chefes de família, essa forma de trabalho torna palpável ter uma fonte de renda em conjunto com as outras tarefas pelas quais são responsáveis. Portanto, as mulheres vão produzindo, modificando ou garantindo a manutenção das cidades e do interior de suas casas enquanto galgam seu sustento. Elas são impactadas pelos efeitos das crises e das transformações no mundo trabalho ao passo que são sujeitos ativos de produção do território e da própria economia e do trabalho a partir “de baixo”. Muito se aponta a precarização e a exploração nas múltiplas jornadas de trabalhos precarizados, realizados gratuitamente ou com baixa remuneração. Entretanto, é preciso ressaltar o papel das mulheres para além da afetação: em meio ao caos urbano, as mulheres precisam ganhar a vida e o fazem a partir de sua criatividade e realidade, são sobretudo sujeitas de suas vidas, cidades e autonomia. Referências bibliográficas: FARIA, Nalu; MORENO, Renata. Desafios feministas para enfrentar o conflito do capital contra a vida – nós mulheres seguimos em luta!, SOF Sempreviva Organização Feminista e da Marcha Mundial das Mulheres, São Paulo, 2017. GAGO, Verónica. A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular. São Paulo: Editora Elefante, 2018. HIRATA, H.; ZARIFIAN, Ph. Travail (le concept de). In:__. HIRATA, H. et al. (coords.) Dictionnaire critique du féminisme. Paris: PUF, 2000. p.230-235. HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas Configurações da Divisão Sexual do Trabalho. Cadernos de Pesquisa, on-line, São Paulo, n.132, set-dezembro, 2007. MORENO, R. F. C. Entre o Capital e a Vida: Pistas Para uma Reflexão Feminista Sobre as Cidades. In__. Reflexões e Práticas de Transformação Feminista. São Paulo: SOF – Sempreviva Organização Feminista, 2015. MOTTA, Eugênia. Casas e economia cotidiana. In:__. Rute Imanishi Rodrigues. (Org.). Vida social e política nas favelas: pesquisas de campo no Complexo do Alemão. 1ª ed. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, 2016, v., p. 197-214. [1] Uma habilidade adquirida pela experiência - um saber prático. [2] Multinacional de consultoria de gestão, tecnologia da informação e outsourcing. [3] Frase retirada da publicação de divulgação da campanha Elas na Direção, lançada pela Uber em 2020. Ver mais em: https://www.uber.com/pt-BR/newsroom/elas-na-direcao-programa-da-uber-voltado-para-mulheres-passa-a-valer-em-todo-o-brasil/ . Acesso em: 28 de março de 2023. [4] As quais ganharam maior amplitude durante a pandemia.
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