Clara Polycarpo, doutoranda em Sociologia pelo IESP-UERJ e integrante do Grupo CASA.
As praias, como toda a cidade, são territórios em disputa. Não só por um lugar ao sol aos fins de semana – em meio a turistas, banhistas e surfistas –, mas, no caso das praias da cidade do Rio de Janeiro, a disputa se dá em torno de um ideal de civilidade e progresso que se atualiza em novas tecnologias de ordenamento e controle, sitiando o espaço público – e reforçando a segregação social e racial que já nos é marca. Esse ideal começa a ser vendido, como um souvenir (ou um cartão-postal), em Copacabana, na Zona Sul da cidade. Desde finais do século XIX, a ambição por uma “Biarritz brasileira” incluía as praias de Copacabana (e Leme) como símbolo da salubridade de um novo projeto de futuro e sociabilidade. Do bucolismo, as praias do Atlântico passaram a representar o crescimento urbano e o estilo de vida moderno, sendo sonhadas por diferentes camadas e grupos sociais como uma nova “utopia urbana”. Como progresso, demandavam ordem. Como civilidade, demandavam distinção. A ocupação da Zona Sul praiana se deu por uma rede de pessoas e suas cartilhas higienistas, elitistas e cultas. E, por contraste, o culto não inclui o popular. Neste cartão-postal, não cabiam os(as) moradores(as) dos morros, das pensões, dos cortiços e, mais adiante, das favelas – tudo de mais insalubre aos olhos da civilização. Firmadas no imaginário carioca as figuras do “sujo” e do “marginal”, o controle sobre seus corpos se torna, então, política pública. Por isso que, em meados do século XX, a chegada de corpos periféricos à praia era banida, através da não circulação dos bondes e da remoção das favelas do entorno da Zona Sul. Apesar das barreiras físicas – e sociais –, porém, os indesejáveis continuaram a forçar a sua presença, ampliando as fronteiras de um Rio que aterrava suas margens. E, para isso, não bastaram só as barreiras, sendo necessário, portanto, a repressão. O Rio de Janeiro, desde sua formação, tem mobilizado suas forças de segurança para a perseguição aos corpos periféricos, favelados e, majoritariamente, negros, reprimindo seus acessos e também suas formas de expressão. E é na década de 1990, por exemplo, que a praia se reforça cenário de um conflito urbano, por um lado, marcado por correntes coloniais e, por outro, espetacularizado por mídias comerciais. As areias das praias da Zona Sul protagonizaram, à época, cenas que ficaram conhecidas como “arrastões” e foram noticiadas como exemplo concreto do perigo representado pela juventude popular negra e periférica quando na invasão de espaços de sociabilidade citadina. Além da marcação de seus corpos, o funk, como manifestação cultural desta juventude, também embalou os conflitos e a narrativa sobre eles, sendo discursivamente relacionado ao tráfico de drogas e à criminalidade. E, para combate a esta desordem, a polícia arrastou consigo todo e qualquer corpo que se enquadrasse no perfil: funkeiros, pivetes, jovens, favelados, negros. Podemos, com isso, afirmar que, bom, a praia nunca foi lá democrática. Afinal, o que temos ainda de democracia? Por outro lado, o sol, o mar, a areia e o bronzeado trazem a imagem de um Rio de Janeiro de gente. E de gente diversa. Gente de perto, de longe, de fora. Gente que leva, gente que trabalha, gente que limpa, gente que curte e faz curtir. Gente que pega o 474 lotado, é revistado, esculachado e barrado, mas tem como desejo a brisa do mar. E chega e ocupa e abre espaço. Porque uma coisa que o carioca sabe viver é de praia. Com mate, marquinha e música. Só que é essa resiliência de ganhar a vida no sufoco que incomoda quem não sabe curtir a cidade e quer guardá-la em uma fotografia na sala de estar. Como parte das políticas de segurança e ordem pública em vigor na cidade do Rio de Janeiro, em 2022, o então prefeito Eduardo Paes (PSD) – que gosta de samba, mas não curte quem faz – resolve, por decreto, proibir a utilização de caixas de som ou quaisquer meios de amplificação sonora nas praias do Rio. A resolução é, então, comemorada por alguns grupos de moradores e moradoras que até hoje não aceitam dividir o espaço da areia com quem não costuma ouvir a “princesinha do mar”. E o fim do canto da gente será fiscalizado pela Guarda Municipal, que, em parceria com programas como o Rio+Seguro, o Copacabana Presente, o Bairro Seguro e, mais recentemente, o Conjunto de Estratégias de Prevenção, têm servido ao controle dos acessos e usos das ruas e orlas do cartão-postal. Assim, em sua pretensão de fotografia, estática e muda, o Rio de gente vai sendo sitiado, demarcado e segregado num imaginário civilizatório que só serve mesmo como souvenir – enquanto cala e expulsa quem faz a cidade viver.
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