Thaís Gonçalves Cruz, mestranda em sociologia IESP-UERJ e integrante do grupo Casa
Cotidianamente, as mulheres negras periféricas têm suas vidas atravessadas pelo racismo estrutural e pela violência. Não importa se é uma das vereadoras mais votadas, se é modelo e está grávida de quatro meses, se é detentora do mais alto cargo administrativo do estado. O sistema impacta diretamente sobre esses corpos. Enfatizo o termo “impactar”, que considero adequado ao contexto, para demarcar que as pessoas negras são entendidas como um alvo. Seja do projétil, seja do preconceito, seja do racismo religioso, da violência política, da violência sexual e de tantas outras. Além (e a partir) dessas violências, as mulheres negras compartilham uma condição quase permanente de viver na dor. Em uma cidade militarizada, essa condição fica mais evidente. Fuzis, tiroteios, caveirões, blindados e câmeras de videomonitoramento fazem parte do controle constante das favelas e periferias, onde as mulheres são a maioria. Somado a esses equipamentos bélicos e de vigilância, há as técnicas de extermínio como as chacinas que fazem lembrar que existe uma pele alvo e uma pele alva no Brasil. Apesar dos homens negros corporificarem as vítimas das execuções sumárias e das prisões, não se pode esquecer que as mulheres pretas também são afetadas profundamente pela militarização do cotidiano. Durante a intervenção Federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, em 2018, houve relatos de estupro, invasões em domicílios e roubos por parte dos militares. Isso, contudo, não é algo recente e pontual. Em 2009, um policial foi acusado de estuprar uma jovem de 21 anos no Morro da Mangueira. Outros três policiais militares, lotados na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Jacarezinho, foram denunciados em 2014 por cercarem mulheres e meninas com socos e pontapés para estuprá-las em becos. Nestes três exemplos, o contexto dos policiais nas favelas era a promessa de melhorar os índices de segurança no estado. Mas parece que estas mulheres não faziam parte do público que receberia tal segurança. O estupro da mulher negra periférica não pode ser entendido aqui apenas como uma violência de gênero, como caso isolado ou como desvio de alguns policiais. Longe disso, ele é parte integrante do genocídio do povo preto. Desde a escravidão, o estupro de mulheres negras foi usado como um instrumento de submissão e controle. Em outras palavras, o abuso sexual é uma das facetas de gerir corpos subalternos e, principalmente, de fazer morrer em vida. Assim, é possível perceber que não houve grandes mudanças nessa estrutura. Ontem como hoje, esses corpos são entendidos como violáveis e matáveis. Outras violências atingem particularmente as mães negras periféricas. Na guerra inventada às drogas, muitos jovens pretos e pretas são vitimados pelo Estado. As mães que já vivem com dificuldades mediante as mazelas sociais e o racismo estrutural são atravessadas com a dor de perder um filho violentamente. Todavia, as mortes por armas empunhadas por agentes estatais são apenas a ponta do iceberg. No último dia 21, semana em que se celebra o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, uma mãe que estava com seu filho morto nos braços foi esculachada e ameaçada por policiais no Complexo do Alemão. Mas não é só (nunca é). Após a bala atingir o corpo alvo há uma criminalização póstuma nos discursos dos governantes e da mídia, que mata-o mais uma vez. Em efeito, as mães revivem toda a dor da perda e precisam colocar-se em movimento, disputar pela memória do filho e por uma verdade que muitas vezes começa pronta por quem nem lá estava. Aqui vale abrir um parênteses: a necessidade de contra-argumentar põe em evidência que os negros precisam a todo instante reafirmar que são pessoas como as outras. Tanto os homens quanto as mulheres periféricas vitimados pela letalidade policial são imediatamente associados a criminosos com intuito de legitimar essas mortes. Logo em seguida, os contra-argumentos são acionados. “Era trabalhador”, “estava comemorando seu primeiro salário”, “estava indo para a escola”, entre outros, fazem parte da disputa moral das vítimas. Essa disputa ocorre tanto publicamente em reportagens e nas mídias sociais quanto nas audiências. Neste último, onde deveriam ser respeitadas, as mães também passam a ser o grupo de vitimados, sofrendo micro agressões institucionais. As longas esperas e os silenciamentos se configuram também como práticas de controle e reforçam a condição de viver na dor e na luta das mulheres pretas periféricas. Importante dizer que não há como hierarquizar a gravidade dessas violências. A morte de um jovem preto ou de uma jovem preta não deve ser considerada mais grave (ou menos) do que um estupro ou do que a dor de uma mãe, uma vez que fazem parte de uma mesma estrutura. Tratam-se de técnicas governamentais e atualizações da violência racializada e generificada. Neste mês, em especial, precisamos enfatizar que a luta e a dor não podem ser apenas das mulheres negras, mas de toda a sociedade. Dado que as técnicas de controle são sistemáticas e institucionais, a única saída para rompê-las é coletivamente. Como indica Bertold Brecht, é preciso agir, antes que seja tarde.
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