20 anos do livro Dos Barões ao Extermínio: a violência como recurso político na Baixada Fluminense8/22/2023 Gustavo Azevedo, mestrando em sociologia pelo Iesp-Uerj e integrante do Grupo Casa.
20 anos do livro dos Barões ao Extermínio: Em 2023, completa 20 anos da primeira publicação do livro Dos Barões ao Extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense, uma das principais referências sobre a região. O livro é fruto da tese de doutorado defendida em 1995, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, por José Cláudio Souza Alves, atualmente professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Nesta edição do Terças de Casa, celebraremos o aniversário de duas décadas dessa obra tão importante para as ciências sociais e para o debate público em geral. No livro, o autor debate como, na Baixada Fluminense, ao longo do tempo, a violência se constitui como um importante mecanismo de poder que se adapta e se reconfigura em relação a contextos locais e nacionais. Nesse sentido, violência, aqui, se refere a uma “estrutura articulada de práticas, relacionada diretamente à organização de grupos, visando a maximização de ganhos econômicos, políticos, sociais e culturais mediante a imposição de sua vontade sobre os demais, recorrendo, em última instância, à agressão e à própria eliminação de quem se opõe a eles” (Alves, 2020, p.10). Por volta dos anos 1930, Alves observa a transição de um regime coronelista, marcado pelo caráter agrário e de concentração de terras, para uma espécie de clientelismo, que tem como principal combustível a produção de votos. Em outras palavras, com as mudanças políticas do pós 1930, com destaque para a universalização do voto, os coronéis, donos das grandes fazendas da região, começam a perder espaço para figuras políticas emergentes que rapidamente compreenderam que a força e a violência são o mais importante recurso político de que podiam lançar mão. A mais marcante destas figuras talvez seja Tenório Cavalcanti: o homem da capa preta. Migrante vindo do estado de Alagoas, Tenório chega a Baixada em meio a intensos conflitos por terras e não demora a assimilar que a violência é um importante capital político na região. A Baixada Fluminense naquele momento havia se tornado um imenso barril de pólvora e o homem da capa preta, acompanhado de sua metralhadora apelidada de “Lurdinha”, vai se valer do mito de possuir o “corpo fechado” para consolidar seu poder. É assim que ele forma um grupo com mais de 40 capangas. Para além da violência, Tenório possuía uma estrutura de distribuição de favores. Montou, em cima da garagem de sua casa, um escritório composto por três secretários e trinta atendentes que dividiam as filas por assunto: comida, emprego, documentos e problemas familiares (Alves, 2020, p.139). Com o início da ditadura civil-militar, em 1964, viu-se uma nova transição do uso da violência na região, agora marcada pela atuação dos grupos de extermínios. Formados majoritariamente por policiais militares da ativa ou da reserva, esses grupos mantinham sua hegemonia a partir de três elementos principais: o financiamento de grupos econômicos da região, especialmente pequenos e médios comerciantes; o aparato policial; e, por último, o suporte de políticos que garantiam o funcionamento dos grupos e se valiam de seus serviços. Para o autor, é possível identificar a existência de um esquema construído para assegurar o funcionamento e a manutenção de uma estrutura de execuções sumárias. Esse esquema complexo seria formado pelo arranjo de alguns fatores essenciais, como: “a atuação ilegal de policiais militares enquanto investigadores e matadores; o financiamento desses policiais por comerciantes; a ação da corporação dos policiais militares e mesmo dos hierarquicamente superiores na construção de versões e no apoio aos seus pares acusados; o medo das testemunhas, a sua total fragilidade, a proteção inexistente a elas no julgamento; a pressão dos policiais militares sobre os jurados; as vinculações do governo estadual com essa estrutura, expressa na sua impotência e consentimento” (Alves, 2020, p.183). O final dos anos 1980 e começo dos anos 1990, é marcado por modificações e aperfeiçoamentos na lógica de funcionamento desses grupos. Neste período, ocorre uma espécie de autonomização dos grupos de extermínio, isto é, um afastamento do aparato policial do esquema de execuções e a entrada de intermediários. Um marco que demonstra essa nova forma de atuação é o surgimento do grupo autodenominado Mão Branca. Demonstrando agir de maneira mais descentralizada, o grupo tinha o costume de telefonar para as delegacias informando os locais onde estariam os cadáveres. É possível identificar ainda a periferização dos grupos de extermínio. Enquanto nos anos 1970 tais grupos tinham como principal zona de atuação os municípios de Belford-Roxo e Nova Iguaçu - que haviam se tornado um imenso “cemitério” onde os trabalhadores, ao saírem para o trabalho, e as crianças, que brincavam pelas ruas, se habituaram a tropeçar nos corpos -, os anos 1980 em diante são marcados pelo aumento dos índices de homicídios em regiões mais afastadas dos centros urbanos da Baixada Fluminense, como Campos Elíseos, bairro de Duque de Caxias. Do outro lado desta tragédia, a figura de Marli Pereira Soares surge como uma descontinuidade em meio a este cenário de desilusão. Como destaca José Cláudio Alves, ela é uma das tantas mulheres que irão se opor às estruturas predominantemente masculinas dos grupos de extermínio. Sua luta, através das inúmeras idas às delegacias de Belford Roxo para reconhecimento, e seu êxito em encontrar os assassinos de seu irmão, Paulo Pereira Soares Filho, demonstra, mesmo que de forma amena, as primeiras rupturas na estrutura do esquema de execuções sumárias. Em nova versão do livro, publicada em 2020 pela editora Consequência, José Cláudio estende sua análise até o ano de 2015. Nela, o pesquisador mostra como a estrutura da violência, até a década de 1990 hegemonizada pelos grupos de extermínio, foi superada por novos modelos na economia política do crime, agora caracterizada, em algumas localidades, pelo domínio sobre o território pelo tráfico de drogas ou pelas milícias. Essa mudança no padrão de violência e da organização do crime na região fica evidente no caso da Chacina da Chatuba, na qual seis jovens foram assassinados por traficantes enquanto caminhavam em direção ao parque do Gericinó. Esse lamentável episódio expressa o fortalecimento do tráfico de drogas na região, que, em resposta às políticas de segurança pública daquela década, passa a entender a Baixada Fluminense como uma região de reestruturação produtiva. Ela passa a servir como abrigo aos desabrigados pelas UPP’s e dá a possibilidade de que eles se mantenham no esquema. Em outra mão, as milícias também se consolidam em territórios reorganizando sua estrutura da violência. Como afirma Alves, a convivência do aparato policial com a estrutura do tráfico de drogas e outras redes de criminalidade, fez com que os agentes do Estado vislumbrassem a oportunidade de assumirem “de frente” um novo empreendimento: as milícias. Para esses agentes, para além do tráfico de drogas e da estrutura de execuções sumárias, a sociedade é vista como um amplo mercado de possibilidades econômicas a serem exploradas, como a venda de acesso clandestino à internet e à TV a cabo, transporte clandestino, venda de gás e venda de votos.
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