João Arthur Macieira
É bem possível que o leitor se sinta, ao atravessar as páginas de O que é meu, de José Henrique Bortoluci, diante da narração de uma dupla existência. Publicado neste ano (2023) pela editora Fósforo, o livro saiu em momento mais que oportuno, não só pelo contexto editorial (a publicação da obra de Annie Erneaux, pela mesma editora há de potencializar em muito as discussões suscitadas pela narrativa), mas também porque, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2022, ingressamos enquanto país, em cenário de repaginação do imaginário coletivo nacional, depois de quatro anos de grandes desconstruções. A literatura brasileira, desde seus fundamentos românticos, e em especial com o romance de cunho realista, ingressa com força nessa missão. Certamente, não se pode reduzir O que é meu a uma posição política, mas é possível atribuir-lhe determinada função crítica, uma vez que se trata de um livro cuja composição discursiva está marcada pela duplicidade, duplicidade que adquire forma e estrutura uma narrativa (bem ao estilo contemporâneo, o que torna a definição do seu gênero bastante difícil) a partir da figura do pai - José Bortoluci, o Didi. Em contraposição, encontraremos, na figura do narrador, uma voz que oscila de um polo a outro, compondo uma espécie de dupla existência, que pendula em identificação com a intelectualidade e o pragmatismo linguístico das classes trabalhadoras. Explico-me melhor: As condições de duplicidade se mostram desde o início, na fronteira entre vida e morte (no corpo do pai), de memória e esquecimento, de pai e filho, de intelectualidade e analfabetismo, de estática e movimento. Através de uma pluralidade de dualidades, a narrativa salta de um tema a outro, compondo algo que o autor decidiu não chamar de “biografia”, porque essa deseja servir aos grandes personagens, tampouco um estudo exemplar sociológico (o autor, José Henrique Bortoluci, é doutor em Sociologia e professor universitário), mas algo outro. O resultado da busca por esse algo outro, parece-me, é justamente um exemplar do tipo de narrativa contemporânea, dominante na literatura do século XXI, estendendo-se ao cinema e às produções audiovisuais e musicais. É coisa que sociólogos, historiadores e críticos de literatura (e, honestamente, leitores e espectadores) foram incapazes de conceituar ou teorizar suficientemente até o momento, o que torna a experiência da leitura de O que é meu algo válido por si só. Entretanto, é sim possível apreender alguma estrutura nesse processo. De modo resumido, pode-se, inclusive, dizer que ela se apresenta desde as primeiras páginas. Por exemplo, entre a décima primeira e décima terceira página, o narrador faz uma de suas analogias entre o pai (ou a vida do pai) e a história do país: "Um país tomado pela lógica da fronteira, da expansão a qualquer custo, da ‘colonização’ de novos territórios, da vandalização ambiental, da vagarosa construção de uma sociedade de consumo cada vez mais desigual. As estradas e os caminhões ocupam lugar de destaque nessa fantasia de nação desenvolvida onde florestas e rios dão lugar a rodovias, garimpos, pastos e usinas… ele se lembra de muita coisa, e suas ‘madaleines’ despontam quando menos se espera: uma imagem na TV faz com que se recorde de quando ficou dias seguidos sem comida, atolado em uma estrada lamacenta do sul do Pará; qualquer notícia de acidente grave passado no rádio abre uma caixa de histórias sobre os muitos que viu e o punhado que sofreu; histórias de aldeias, de caçadores, de paisagens tropicais distantes, de companheiros - alguns leais, outros não, a maioria deles já falecidos. Narrativas que vão desfilando e se recompondo sem o apoio de fotos ou anotações. Resta a memória de um senhor de quase oitenta anos, já um tanto embaralhada pelo tempo” Daqui, segue um discurso direto do pai. A partir desse modelo, estruturar-se-á uma forma de narrar que compõe a totalidade do livro: o narrador intervém, apresenta o pai, por vezes através de ações, memórias e sentimentos, mas sempre numa dimensão relacional ao pai (ou aos pais). Daí, intervém um outro tipo de discurso, claramente mais intelectualizado, quando não propriamente acadêmico, de onde surgem analogias, comentários e alegorias sobre a condição humana, mas também (e especialmente) sobre a condição nacional. Há também os discursos diretos de Didi (José Bortoluci, o pai), onde a experiência direta que fundamenta toda a matéria-prima, não apenas das narrativas narradas pelo pai, mas das memórias inauditas, da própria constituição desse personagem, objeto de investigação-narração do autor, aparece sob uma linguagem oral, muitas vezes propositalmente fora do registro culto. Então, por que falar em dupla-existência, dupla-condição, ou mesmo de dialética? É simplesmente porque a dialética não é atributo da leitura crítica, empurrada para cima da narrativa, mas parte da própria composição formal do texto. O narrador (e autor) é ele mesmo composto por uma dupla condição de filho das classes trabalhadoras e intelectual sofisticado, culturalmente pertencente à elite do país. Essa dupla-condição encaminha suas intervenções em dois sentidos: ele é duro crítico da forma como a intelectualidade (e não apenas a academia) trata de maneira ingênua, elitista, distante ou condescendente as classes trabalhadoras; ao mesmo tempo, é da natureza de seu próprio discurso a marca da intelectualização e das abstrações típicas do pensamento social contemporâneo, que salta da filosofia (ao estilo filosofia da vida) à literatura de cunho social e às reflexões sociológicas de tipo ensaístico. De modo que uma instância nega a outra, o discurso intelectual quer negar a si mesmo dentro do texto, mas retorna o tempo todo como parte integrante da estrutura da narrativa. Pode-se dizer que, sem ele, esse livro seria impossível. É verdade que se atribui certo pragmatismo às classes trabalhadoras (o que é, por si só, uma tese acadêmica existente no mercado de bens intelectuais), em contraposição à verborragia e malabarismos abstratos dos bem-pensantes - numa passagem especialmente divertida, o narrador diz que “ao explicar a meu pai que eu estudava no doutorado a política em torno da arquitetura e da habitação popular, ele ordenou sem rodeios: Fala pra eles que os pobres merece ter casas maiores” (p. 121). Deve-se lembrar que as vidas dos personagens representantes das classes trabalhadoras vêm sendo narradas ao menos desde o final do século XIX na literatura brasileira - o que, evidentemente, não quer dizer que tenha sido bem feito - e que não é por isso que o livro de Bortoluci se destaca. É justamente nessa indecisão, ou impossibilidade de decidir por uma forma discursiva ou outra (algo que pode ser visto mesmo como uma falha ou um dos trunfos do livro, é uma questão de opinião da crítica literária vindoura), que mora a originalidade do livro. No primeiro momento, pode parecer que é o professor universitário com doutorado nos Estados Unidos se curva diante do pai caminhoneiro, mas logo se vê que os discursos tentam complementar um ao outro, que um tipo de aliança é, senão possível, tentada. Em analogia ao momento político em que vivemos, nada mais significativo que um acadêmico buscar uma aliança com as classes trabalhadoras (que, como o pai do narrador, achavam que teria morrido há muitos anos). O livro talvez peque pela excessiva cautela literária. Porque tomado pela duplicidade de discursos - o do pai (proveniente das classes trabalhadoras) e o do filho (o intelectual que tentar dar sentido teórico-sociológico às existências sua e do pai) - parece faltar ousadia imaginativa. Contudo, há uma beleza excepcional em certas passagens, certamente capazes de trazer emoções às superfícies dos leitores mais rígidos, como a descrição do corpo do pai entre as páginas setenta e setenta e um. É justamente aí que o livro alcança seus pontos mais altos; quando desiste do tom propriamente sociológico - o que não significa que abdique de alcançar o real com unhas e dentes da palavra - e deixa-se levar por uma prosa fluída: “Esse corpo teimosamente antieuclidiano ganha novas dobras, orifícios, cavidades, rugas. Formas carcomidas pelo tempo ou moldadas pelas mãos de cirurgiões. Em seu corpo doente, essas vias sinuosas, as vesículas flácidas e a matéria avermelhada se estendem para fora do corpo, se ligam a bolsas, canais e sondas, apêndices industriais que, moldados por nossas limitadas inteligências cartesianas, parecem tão estranhas quando acoplados ao orgânico e sinuoso do corpo… Como se a palavra só pudesse surgir quando aceitássemos a farsa de que não somos intestinos, uretras, próstatas, urina, pele, pelos e merda, como se a civilização só passasse a existir quando escondemos essas dobras e matérias proibidas que nos põem de frente à nossa condição de animais”. José Henrique Bortoluci é autor de ouvido atento, que aprendeu a escutar com quem sabia falar muito bem - e especialmente, a escolher com muita atenção o que dizer, escolher o que é seu. Acerta em cheio quando narra enquanto narrador e não enquanto sociólogo: “Meu patrimônio são as palavras do meu pai - as palavras daquelas histórias que da minha infância e as que ouvi nestes últimos anos, enquanto ajudava a cuidar de seu corpo frágil” (p. 132). Apesar de interessantes, quando põe a si mesmo em perspectiva, os resultados não são tão regulares. Cai, por vezes, em clichês do texto crítico-acadêmico ao tentar tecer críticas ao próprio texto de tipo crítico-acadêmico (“Projetar de forma abstrata nossos conceitos sobre grupos populares é um mecanismo de defesa contra sua incursão real no debate político e em instituições culturais de elite”, p. 101). Em outras, apresenta uma espécie de autoanálise sociológica: “Há um traço comum na história daqueles que experimentaram processos complexos e marcantes de mudança de classe social: ao longo dos anos, nos sentimentos compelidos a nos afastar daqueles que nos apresentaram o mundo. Somos forçados (e nos forçamos) a nos desvencilhar de seus hábitos, de seus gestos, das formas de lidar com dinheiro, com a casa e com o corpo, de seus gostos e, sobretudo, de suas palavras. Mas, apesar desse sinuoso processo de nos desconstruir e reconstruir, algo sempre insiste em permanecer” (p. 119). Longe de demonstrar um problema de composição, acredito que é através dessa irregularidade que a duplicidade que compôs - e compõe - grande parte de nosso pensamento social e literatura se manifesta nos seus fenômenos mais sofisticados.
0 Comments
|