Bianca Laurenzano e Rodrigo Agueda, doutoranda e doutorando em sociologia pelo Iesp-Uerj e integrantes do Grupo Casa.
A série Os Outros (2023), idealizada por Lucas Paraizo, acompanha a vida de duas famílias moradoras de um grande condomínio, seguindo os conflitos que se desenvolvem a partir de uma briga entre os filhos dessas famílias. De um lado, Amâncio, vendedor em uma loja de eletrodomésticos e sua esposa Cibele, contadora autônoma, vivem em um apartamento que financiaram para criar seu filho Marcinho. Do outro, Wando, vendedor de carros e Mila, que a princípio não trabalha, vivem em outro bloco do mesmo condomínio com seu filho Rogério. Fictícia, mas fortemente baseada em lugares, fenômenos e imaginários ao redor do bairro da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, a série se debruça sobre os conflitos e os desejos associados a um modelo de vida buscado por muitas famílias “emergentes” oriundas de outras áreas da cidade que buscam o bairro para morar. No decorrer da série aparecem diversos temas caros à sociologia urbana, ricos para pensar questões sobre violência, segurança, moradia, ascensão social, projetos de vida, sociabilidades e ethos urbanos no Rio de Janeiro de hoje. Da expectativa da segurança que leva ao controle da milícia, da busca por comunidade que leva a rivalidades intensas e da busca por status social que gera crises nas economias das casas, Os Outros nos leva a refletir sobre a dicotomia promessa versus realidade dos sonhos e projetos das camadas médias urbanas cariocas. Partindo de uma briga entre os jovens Rogério e Marcinho na quadra de seu condomínio, diversos conflitos se deflagram e se escalonam como numa boneca russa que expõem um microcosmos de conflitos comuns a uma parte da sociedade brasileira, entre conflitos morais, violência doméstica, masculinidade, etc. A série se constrói sobre imaginários estereotipados da Barra da Tijuca. Apesar de não estar explicitamente marcado durante os episódios, o bairro é claramente não só o espaço onde a série se passa, mas também o fundo moral da trama, das relações e expectativas dos personagens e dos fenômenos tratados pela série. Um dos aspectos mais marcantes da presença implícita do bairro está no modelo de morador ao qual os personagens tentam se enquadrar. Esse tal ethos barrense, que talvez seja estranho para quem não é do Rio de Janeiro, certamente é bem comum para os cariocas. Seja pensado enquanto um “ethos emergente” (Lima, 2007), uma forma de vida e compartilhamento de símbolos entre aquelas classes que “cresceram na vida” e se mudaram do subúrbio para a Barra da Tijuca, seja pensado enquanto um cotidiano específico de uma vida fechada em condomínios. Alicerçado em clichês sobre uma determinada classe média e seus desejos de ascensão, a narrativa da série percorre e reforça imagens sobre esses grupos em uma busca incessante por um modo de vida específico, um “ethos que valoriza, concomitantemente, o trabalho árduo e o consumo conspícuo” (Idem, p. 175). Esses projetos de vida, que tem a Barra e seus condomínios como fim, são ilustrados pelo núcleo familiar de Cibele e Amâncio, ex-moradores do subúrbio que se dedicam para conseguir financiar um imóvel em um lugar mais seguro, especialmente em função da segurança e da criação de um filho. Ainda assim, esse “sucesso” que representa tal ethos nunca de fato se concretiza, numa busca por status e segurança contínua, em cima da qual a trama se desenvolve. Um elemento primordial na série, que perpassa todos os temas abordados, é a forma residencial de condomínio. Não apenas esse modelo autossegregado e aparentemente auto suficiente de moradia constitui um dos principais aspectos do imaginário sobre a vida do barrense e seu ethos, como ele é a base das questões abordadas na série, como segurança, vizinhança, público e privado, sociabilidade e consumo. Carro-chefe da expansão que criou a Barra da Tijuca, e parte do imaginário sobre o bairro, esse modelo de grandes condomínios ocupa não só grande parte da Zona Oeste da cidade, como também vem ocupando outros bairros e os projetos de vida de famílias em ascensão (ou em sua busca). Segurança e comunidade, os dois principais motivos dos confrontos em Os Outros, são também os principais chamarizes das propagandas desses investimentos. Como lembra Christian Dunker (2015), esse modelo de moradia foi inspirado em um pesadelo distópico, como do filme de Godard, Alphaville (1965), para se tornar um grande sonho de consumo. A série de Lucas Paraizo parece aludir à obra de Godard, em que esse espaço de promessa de tranquilidade e de “todo dia é Domingo” (Caldeira, 2000) se torna novamente um círculo distópico de controle e desespero. O sonho da casa própria, em um espaço ideal para a criação de um filho e da família, se torna o ambiente do constante medo, desespero, manipulação e violência. Aspectos que estariam em contradição com a almejada segurança. Apesar de ser um tema central, a obra parece indicar que a lógica securitária viria de fora. Concretizando-se através dos serviços oferecidos pelo ex-policial Sérgio, representação do miliciano. Entretanto, na construção desses espaços, a segurança tem sido não apenas um desejo imaginário, mas está alicerçada na contratação de empresas de segurança privada que estendem sua ação por toda a região. Nesse sentido, os aparatos securitários não seriam apenas efeito, mas constituinte das escolhas habitacionais. Enquanto um simulacro urbano, o condomínio constitui um microcosmos dos conflitos sociais, das dinâmicas da cidade que se intensificam em um espaço fechado ao exterior. Assim como as famílias de Wando e Mila e de Cibele e Amâncio representam toda uma gama de projetos de vida de camadas médias urbanas, os conflitos internos de vizinhança são retratos de uma relação com um “outro” que constitui a própria relação dos condomínios com a cidade. Como a própria série explicita no começo de cada episódio, realçando a palavra “sou” dentro do título OsOutros, o condomínio é o espaço em que as aspirações individuais se confrontam com os projetos de outros, seja dos vizinhos, com quais os conflitos são constantes, seja do outro de fora, o estranho, dos quais o condomínio tanta separar. A presença extensiva de seguranças privadas é aspecto marcante na construção do espaço e no cotidiano dos condomínios da Barra da Tijuca, fator que ficou de fora da representação na série. Talvez em uma tentativa de ilustrar um “mito de origem” dessa segurança privada ostensiva - que se confunde com um “mito de origem” da milícia - o espaço seguro do condomínio é, inicialmente, realizado apenas por um porteiro, figura também muito importante nesse espaço do condomínio, o difusor das histórias e acontecimentos. Apenas conforme a trama vai se desenvolvendo e os problemas aparecendo, o “problema da segurança” é produzido, amparado na figura de Sérgio, ex-policial, que começa a explorar essa demanda oferecendo serviço de segurança ao mesmo tempo que induz, cada vez mais, o sentimento de insegurança que justifica incessantes novos aportes e contingentes de segurança. A dinâmica da atuação da segurança privada de Sérgio se assemelha a como a milícia atua em alguns territórios no Rio de Janeiro: cobrança de taxas de segurança, enquanto continua apresentando novos riscos à segurança dos moradores de um território. A prática de extorsão se torna um ritual marcado por ameaças e violações. Mas essa representação caricatural de atuação das milícias em territórios (muitas vezes periféricos) chama atenção por desconectar a atuação dessas empresas em condomínios como o representado. Um levantamento feito pela IDMJR constatou que existem, legalmente, no estado do Rio de Janeiro, 403 empresas de segurança privada, e que 71% atuam na região metropolitana. A maioria dos trabalhadores dessas empresas são agentes ou ex-agentes de segurança pública. É no mesmo período que, no estado do Rio, há a expansão do domínio territorial das milícias e uma ampliação da atuação das empresas de segurança privada. Com isso em perspectiva, a análise da estrutura dos condomínios-bairro da Barra da Tijuca não perde de vista a temática da securitização do Rio. Numa reportagem de 2002, do Jornal O Globo, já há um destaque para a arquitetura de condomínios na Barra que levam em consideração a violência urbana da cidade. Entre estereótipos do ethos emergente, imaginários da vida em condomínio e um jogo de escalas entre problemas de vizinhança e problemas de segurança, Os Outros se apresenta enquanto um retrato de muitos fenômenos recentes que tomam conta da construção simbólica do bairro da Barra da Tijuca. A série trata das muitas tentativas frustradas e das promessas não realizáveis que perpassam os projetos de ascensão social carioca. Não à toa, ela é gravada em um condomínio que é talvez o maior exemplo de insucesso imobiliário da principal construtora dos ditos “bairros planejados” na região da Barra da Tijuca, o Ilha Pura. A busca por sair do subúrbio em direção à costa, de morar em um grande condomínio, com a expectativa de criar a família em meio a um espaço seguro, de boa vizinhança e amplas opções de lazer, se confronta com as possibilidades materiais de atingir tal status. A prometida tranquilidade e segurança de um espaço fechado e privativamente vigiado, se mostra, na realidade, a causa do medo, da desordem. Em seus acertos, exageros e deturpações grotescas, a série abre espaço para pensarmos o fenômeno dos grandes condomínios, segurança e milícia, classes médias, projetos de vida e sociabilidades no Rio de Janeiro de hoje. Uma distopia verossímil de um sonho de consumo, uma Alphaville à carioca que dramatiza os conflitos que constituem o cotidiano da Barra da Tijuca. Bibliografia: CALDEIRA, Teresa Pires. Cidade de Muros – crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000. DUNKER, Christian. Mal-estar, sofrimento e sintonia: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015. LIMA, Diana. Ethos "emergente": as pessoas, as palavras e as coisas. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 13, n. 28, p. 175-202, 2007.
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