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Da lama ao asfalto, do asfalto à lama: chuvas, enxurradas e alagamentos em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense

4/9/2024

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Fotografia
​Gustavo Silva de Azevedo, morador da Baixada Fluminense, doutorando em Sociologia pelo IESP-UERJ e pesquisador do Casa e do Bonde.
 
No começo da noite do dia 13 de janeiro de 2024, uma forte tempestade atingiu a Baixada Fluminense. Logo após as primeiras horas de chuva, começaram a circular pelas redes sociais, por grupos de WhatsApp e conversas familiares, imagens de enxurradas, deslizamentos, extensos alagamentos e pessoas sendo arrastadas. Mensagens e ligações desesperadas alertando aqueles que estavam na rua a não retornarem para casa eram enviadas em grande quantidade, assim como imagens compartilhadas de pessoas “ilhadas” em estabelecimentos comerciais ou presas na Rodovia presidente Dutra ou outra via expressa da cidade. Eu mesmo, fui um dos que recebeu mensagens desse tipo e não consegui voltar pra casa. No dia, estava celebrando o aniversário de um amigo na Zona Norte do Rio de Janeiro, quando meu celular começou a tocar com a notícia de que seria impossível voltar à Baixada Fluminense naquela noite.

Em 21 de fevereiro, outra tempestade. Dessa vez, marcada por imagens fortes que foram exibidas inclusive em jornais de circulação nacional. Quem não se viu aflito ao assistir à cena gravada por um celular na qual um rapaz de dentro de um ônibus “ilhado” no bairro Jardim Alvorada resgatava uma mãe com uma criança de um carro que, segundos após a família desembarcar, é arrastado pela força da água? Ou quem não se assustou com a cena de uma moradora do bairro Comendador Soares protestando com água até o pescoço em estado de completa indignação pelo transbordamento do Rio Botas?

Nova Iguaçu enfrentou ao menos duas grandes chuvas que resultaram em enchentes durante o verão de 2024: uma no dia 13 de janeiro e outra na noite do dia 21 de fevereiro. Essas não foram as únicas. Há relatos de outras chuvas de menor magnitude que atingiram apenas bairros específicos. Porém, sem dúvidas, ocorridas em um intervalo de 40 dias entre uma e outra, ambas foram as mais emblemáticas e marcantes enchentes do verão iguaçuano.

Nos bairros afetados, os moradores atribuem a culpa da tragédia a vários fatores.  Do ponto de vista político, há muitas denúncias de negligência por parte das prefeituras, evidenciada pela falta de obras, falta de drenagem e acúmulo de lixo nas margens da bacia do Rio Iguaçu-Botas - rio que nasce na Serra de Madureira e deságua na baía de Guanabara. Do ponto de vista ambiental, recentemente, cada vez mais têm sido mobilizadas narrativas que atribuem enchentes e alagamentos às mudanças climáticas e ao possível aumento do regime de chuvas em algumas regiões. Nesse contexto, há um elemento particular que coloca a Baixada Fluminense como território central nessa discussão: a propensão a inundações devido a características geofísicas da região. Dentro desse cenário, muito se discute sobre a tragédia em Nova Iguaçu ser um fenômeno representativo do que tem sido descrito como racismo ambiental (Cole, Foster, 2001; Hage, 2017).

Etnograficamente, foi possível observar especificidades e outros atores que são responsabilizados por moradores de Nova Iguaçu. Para entendermos a relação entre esses atores e as enchentes é necessário especificarmos de qual parte do grande município de Nova Iguaçu estamos falando. Alguns dos bairros mais afetados pelas duas grandes enchentes de 2024 estão “espremidos” entre a Serra do Mendanha e os muros que beiram a linha férrea do Ramal Japeri. Assim, quando os rios transbordam, a vazão não é suficiente para escoar a chuva e a água que desce o morro encontra o muro da ferrovia como obstáculo. Ali represada, o nível da água sobe gradativamente e invade as casas da população desses bairros.
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Nesse sentido, construções recentes de shoppings, condomínios, barragens e modificações feitas na Serra do Mendanha - todas datadas de no máximo 15 anos - podem ser responsáveis pelas fortes enxurradas com grande quantidade de lama que descem da Serra a cada temporal. A especulação imobiliária na região gerou uma pressão sobre as terras “disponíveis para a construção” próximas à Serra. É como se o município, mesmo já acostumado a enfrentar enchentes há muitos anos, observasse a paulatina e visível degradação do morro como um ponto de inflexão que resultou no aumento das enxurradas - ou pelo menos de sua força -, das enchentes e, sobretudo, da lama deixada por elas.
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Depois do temporal, a lama
 
​Nova Iguaçu, 24 de fevereiro de 2024 - Arquivo pessoal
 
Nesse contexto, pelo menos durante o verão, a lama passou a fazer parte da paisagem iguaçuana. Ao caminhar pelos bairros afetados pelas enxurradas, é possível observar o asfalto completa ou parcialmente coberto pelo barro. Vê-se em alguns pontos amontoados de lama, lixo e galhos de árvores que também foram arrastados pela água, organizados por trabalhadores da prefeitura para que sejam recolhidos posteriormente.

Entre a primeira e a segunda grande chuva, um intervalo de quarenta dias. Nesse tempo, a lama permaneceu sob o asfalto. Quando chove, o transtorno de sujar os pés ao sair de casa é inevitável. Nos dias secos, a grande proporção de poeira que paira no ar traz incômodo à saúde da população. Alguns moradores com pás, vassouras e mangueiras tentavam retirar o excesso de barro da frente de suas casas. Poucos dias antes da segunda grande chuva, a prefeitura realizou uma força tarefa para retirar a lama das ruas. Com a enxurrada do dia 21 de fevereiro, esse esforço foi em vão. Menos de uma semana depois da limpeza, lá estava a lama de novo. E permanece.

Moradores antigos da Baixada costumam sempre repetir a frase: “aqui era tudo lama”, em referência a um momento anterior à pavimentação das ruas. Sujar os pés de lama ao sair de casa é constitutivo de uma noção de um passado superado em boa parte da Baixada Fluminense. Assim, a chegada do asfalto carrega consigo um ideal de progresso manifesto na fala de quase todos os moradores mais velhos da região. Como definiu Cortado (2021), o progresso é o que temporiza a experiência dos moradores e faz com que eles diferenciem o atraso do progresso. No entanto, de forma irônica e trágica, mesmo que em um contexto diferente, as enchentes trazem consigo a volta da lama como parte da vida e da paisagem iguaçuana.
 
Referências:
COLE, Luke; FOSTER, Sheila. “A history of the environmental justice movement”. From the ground up: Environmental racism and the rise of the environmental justice movement. NYU Press, 2001. p.19-33
CORTADO, T. J. Aos poucos: agenciando pessoas, casas e ruas na periferia do Rio de Janeiro. Sociologia & antropologia, v. 11, p. 195-217, 2021.
HAGE, Ghassan. Is racism an environmental threat? Cambridge: Polity Press, 2017.

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