Gustavo de Queiroz, doutorando em sociologia pelo IESP-UERJ e pesquisador do Grupo Casa.
Alô, Sapucaí! Alô, meu povo do Setor 1! Arrepia! “Embalado na magia do seu carnaval …”[1] e com muita saudade do Mestre Quinho[2], “lá vou eu”[3] em mais um Terças de Casa, que completa 2 anos de publicações. No dia 2 de março deste ano, a Passarela Professor Darcy Ribeiro, mais conhecida pela alcunha de Sambódromo da Marquês de Sapucaí, completou 40 carnavais que a Avenida dos Desfiles explode corações na cadência repiques, tamborins, surdos, caixas e pandeiros[4]. Neste curto texto, traço reflexões quanto aos usos e sentidos de uma Passarela construída durante o entusiasmo da redemocratização do país. Antigo projeto de Amaury Jório[5], a iniciativa de construir instalações fixas para abrigar os desfiles de escola de samba nasceu institucionalmente em 1978, quando o, então, prefeito Marcos Tamoyo (1975-1979) transferiu os desfiles para a singela Rua Marquês de Sapucaí, localizada no bairro da Cidade Nova, centro do Rio de Janeiro. Contudo, apenas 5 anos depois, em setembro de 1983, durante a prefeitura de Jamil Haddad (1983) e Marcelo Alencar (1983-1986), que o projeto saiu do papel. Construída entre 1983 e 1984, anos em que o país fervia politicamente diante da redemocratização, que tomou ritmo lento, para a grande massa do povo brasileiro, gradual e seguro, para os algozes ditadores militares, é interessante pensar em como o Sambódromo é um monumento em que se pretendeu dar forma a diversas propostas de cidadania e democracia, em difusão naquele momento de enfraquecimento do regime militar. A ideia de retomar o projeto de erguer uma passarela do samba na Marquês de Sapucaí tomou força com a eleição, em 1982, do governador Leonel Brizola e seu vice-governador Darcy Ribeiro, que assumiram o comando do Palácio da Guanabara sob o espírito do Socialismo Moreno[6]. Ex-exilado político, liderança histórica do trabalhismo brasileiro e um dos principais políticos de oposição à Ditadura Civil-Militar, o eleitorado fluminense impôs uma derrota bastante amarga para aqueles que tentavam manter o Brasil sob o padrão apenas dos desfiles militares ao colocar Brizola na cabeça do estado do Rio de Janeiro. Primeiro projeto de um governo democraticamente eleito após 16 anos de eleições suspensas pela Ditadura Civil-Militar, tamanha foi a importância da Passarela que o próprio vice-governador e secretário de cultura Darcy Ribeiro assumiu as diretrizes do projeto e pediu a seu amigo de longa data, o arquiteto modernista Oscar Niemeyer, para projetar a Passarela. A Niemeyer foi incumbida a missão de não só construir uma avenida para os desfiles, mas, com a austeridade de seus arcos de concreto, erguer um monumento no centro do Rio de Janeiro que sacralizasse o samba, o carnaval e a arte negra em terreiro que outrora foi o berço dos antigos carnavais e dos primeiros desfiles das escolas de samba[7]. Indo além, o arquiteto desenhou um sambódromo que ambicionava, no espírito da redemocratização, reunir novamente festa e povo e democratizar o acesso ao carnaval. Ademais, o preço salgado e a desorganização da venda de ingressos colocavam para fora das arquibancadas e camarotes gente muito bamba, mas sem prata para jogar no ar. Soma-se a isso a ideia de aproveitar a estrutura Passarela para abrigar alguns dos primeiros CIEPs: Centros Integrados de Educação Público. Influenciado por reivindicações de moradores dos bairros do entorno da Passarela e alinhado à inovadora política educacional de Leonel Brizola, Niemeyer ambicionou que, sob as arquibancadas da Avenida do Samba, ao longo do ano, os camarotes dariam lugar a salas de aulas, bibliotecas e refeitórios para 15 mil alunos. Dessa maneira, diante de sua proporção monumental, ineditismo e o afã necessário para dar conta de entregar o Sambódromo a tempo do carnaval de 1984, a obra foi alvo de vigília e das línguas ferinas de jornalistas. A obra caminhava com zelo proporcional ao simbolismo que carregava. A concretização da Sapucaí como um espaço de cultura e educação, que reunisse o povo para o desbunde geral dos cortejos negros dos subúrbios e favelas fluminenses era um horizonte de um Brasil mais democrático com militares nos quartéis. De lá pra cá, o Sambódromo se consolidou como um dos principais espaços do carnaval brasileiro, dando formas modernas ao festejo que se concebe como uma tradição imemorial. Contudo, a Passarela construída com o destino de reunir festa e povo num mesmo terreiro teve ao longo desses 40 carnavais uma relação bastante ambivalente entre os ideias democráticos que influenciaram seus arcos de concreto-armado e a ambição comercial de fazer o carnaval um objeto de consumo, um grande espetáculo. Neste último carnaval, durante a celebração dos quarenta anos de Avenida, no Sábado das Campeãs, enquanto o show de comemoração, que abriria os desfiles, estava em corso pela avenida, diversos foliões com os caros ingressos nas mãos, dos quais juntavam-se na multidão, eram barrados nas entradas da Sapucaí por um motivo: portarem latas de alumínio. Ora, para quem é minimamente íntimo dos desfiles, mesmo que só pela transmissão da televisão, sabe que mais antiga que a Passarela é a tradição dos foliões das arquibancadas levarem, além da animação e o amor pela escola de coração, os mais diversos quitutes, tira-gostos, bebidas e biritas. Se o concreto das arquibancadas é austero, o banquete que se dá sobre ele é farto, generoso, salgado ou doce, e, principalmente, regado à cerveja. Assim, a decisão de barrar as latas, além da mordaz novidade, que pegou os mais antigos bambas desprevenidos, foi um protocolo de segurança bastante distantes do banquete democrático que fez um sambódromo aquela avenida. A cena era que enquanto os brincantes e torcedores, barrados pelos seguranças, passavam a cevada das latas para garrafas plástica para conseguir entrar na Sapucaí, turistas e estrangeiros, pouco atentos às tradições da Passarela e usualmente de pele muito mais clara e olhos muito mais azuis que a maioria dos foliões fluminenses, adentravam, sem estresse, no templo do samba. De fato, é antiga a tentativa de espetacularizar (Carvalho, 2010) o carnaval das escolas de samba, transformando em um produto a ser consumido. Acontece que também é persistente a recusa do público da Sapucaí em ser meros espectadores, plateia apática que assiste e não participa. São foliões, brincantes, torcedores que cantam, sambam, ceiam e brindam os desfiles apesar da tentativa exploratória de presidentes e diretores de agremiações que buscam embranquecer, elitizar e comercializar o carnaval. Não creio que a chave dessa discussão quanto a cultura popular seja bem contemplada por um binarismo entre a tradição romântica, pura e comunitária, e a modernização, capitalista e racionalizadora (Koslinski; Guillen; 2019). O próprio Sambódromo é um projeto forjado no encontro de ideias, políticas e estéticas que se reclamam modernas e tradicionais, alinhadas, contudo, na marcha democrática que agitava o país. Também não aposto que seja enriquecedor para a discussão pensar as culturas populares, em geral, como um polo oposto e avesso aos mercados. O dinheiro participa de sistemas culturais e cultura é diferença, movimento e, de certo modo, contágio: processos culturais são, desde sempre, abertos e em movimento (Cavalcanti, 2015, p. 19). Contudo, é importante refletir em que dimensão o quarentão Sambódromo vem sendo administrado sob o signo do direito à cultura, ideia germinada e amplamente discutida durante sua construção. Nas cinzas da quarta-feira, afinal, pra quem é a festa? [1] Trecho em referência ao célebre samba-enredo G.R.E.S Acadêmicos do Salgueiro Peguei um Ita no Norte (1993). [2] Célebre puxador de samba-enredo, ganhou notoriedade no G.R.E.S Acadêmicos do Salgueiro, quando, em 1993, puxou o icônico samba Peguei um Ita no Norte. Tristemente, faleceu em janeiro deste ano aos 66 anos. [3] Idem ibidem [4] Trecho em referência ao samba-enredo do G.R.E.S Acadêmicos do Salgueiro Tambor (2009), cujo Quinho também foi puxador. [5] Figura histórica do carnaval carioca, carnavalesco e membro fundador da G.R.E.S Imperatriz Leopoldinense e presidente da Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro (AESCRJ) [6] Alcunha dada à agenda política de Brizola e do PDT (Partido Democrático Trabalhista) que, em síntese, ambicionava estruturar uma política econômica e social alinhada aos modelos das sociais-democracias europeias. [7] A Rua Marquês de Sapucaí ficava nas reminiscências da antiga Praça Onze de Junho, local CARVALHO, José Jorge de. ‘Espetacularização’ e ‘canibalização’ das culturas populares na América Latina. Revista Anthropológicas, ano 14, vol.21 (1): 39-76. 2010 CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval, ritual e arte. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2015. KOSLINSKI, A. B. Z.; GUILLEN, I. C. M.. Maracatus-nação e a espetacularização do sagrado. Religião & Sociedade, v. 39, n. 1, p. 147–169, jan. 2019.
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