João Arthur Macieira, doutorando em sociologia pelo IESP-UERJ e integrante do Grupo Casa.
O ensaio sai sempre em busca de formas, mostraram Lukács e Adorno. Se é assim, talvez este texto não tenha por definição a forma ensaística, uma vez que não chegará a elaborar uma forma a partir da obra de Geovani Martins, mas se pareça mais com um comentário crítico. De toda forma, o objetivo aqui é apresentar o novo romance de Geovani Martins em algumas de suas características mais interessantes. Evidentemente, este texto não se pretende exaustivo, nem mesmo nos pontos que pretende ressaltar. Temporalmente, ele parece, à primeira vista, um diário dividido em três partes. Iniciando em julho de 2011, terminando em outubro de 2013, passado inteiramente no Rio de Janeiro, o livro cobre alguns dois anos mais agitados da história recente da cidade e do país. Mas aqui se trata de ficção e - ainda que uma ficção realista (ou, também chamada de novo realismo) -, o fato é que não se pode confundir as experiências narradas em Via Ápia com uma expressão imediata da realidade da cidade, nem mesmo tendo como base o ponto de vista de uma subjetividade construída a partir dessas experiências concretas. A trama aqui se desenvolve ao redor da vida de cinco protagonistas: os irmãos Washington e Wesley, e os amigos Murilo, Biel e Douglas, todos moradores da Rocinha. Suas subjetividades acompanham a estrutura do romance - talvez melhor fosse dizer que elas é que estruturam a dualidade de Via Ápia, na medida em que experimentam uma catástrofe[1], que invade a realidade do ambiente como uma invasão externa, mas continuam a buscar um sentido para suas vidas, experienciando a realidade entre aquilo que passou (a Rocinha antes da invasão estatal para a instalação das UPPs) e o que viria depois. A primeira parte do romance é toda baseada nessa atmosfera de espera[2], mas uma espera silenciosa que circula somente entre comentários e sussurros. Até a centésima página, a invasão que está por vir não é tema principal de nenhuma das seções do texto, aguardando sua concretização até o início da segunda parte. Diz o narrador: “Era como se tudo no morro estivesse suspenso, esperando o bagulho acontecer”(p. 110), ainda que essa espera não caracterize aquele movimento de autoconstrução positiva que conhecemos do romance de formação, mas lembra mais aquele tipo de espera enquanto tédio - isso é, mais uma espera negativa, como aquela liricamente elaborada por Baudelaire nas Flores do Mal. É uma espera que não sabe pelo que ansiar: “a real é que ninguém tinha certeza de nada” (p. 112), nem mesmo se a operação seria real, se haveriam confrontos com as facções locais, se os moradores passariam um inferno na mão dos policiais… num momento de incerteza, todas as especulações circulam entre os personagens como possibilidades. A segunda parte constitui um momento no qual a catástrofe já aconteceu e, portanto, passa a estruturar as condições da realidade experienciada pelos personagens. Ao mesmo tempo, é o momento em que se vivem maiores expectativas no plano individual, na medida em que cada personagem vai, agora sim como na tradição do romance de formação, adquirindo consciência dos seus desejos e suas aspirações. De modo que um duplo movimento se instaura na segunda parte de Via Ápia: a catástrofe (isso é, a invasão estatal) começa a se desenrolar e suas consequências se intensificam; ao mesmo tempo, como manda a forma romanesca, os personagens amadurecem subjetivamente com o desenvolvimento da narrativa. O resultado parcial não é uma interioridade mais tranquila, mas mais conflituosa para todos eles, na medida em que o mundo externo agora aparece não só como a realidade que pode vir a concretizar os desejos e sonhos desses personagens (tornar-se um tatuador profissional, largar o exército e descobrir uma vocação, ajudar a mãe a comprar a casa própria, são exemplos da narrativa), mas é, ao mesmo tempo, um lugar de riscos máximos; onde a cada esquina é preciso colocar a vida em risco para concretizar aqueles mesmos desejos. A terceira parte, portanto, reconcilia essa contradição entre expectativas e riscos; colocando em jogo também as possibilidades de vida e morte. Se Via Ápia seria impensável fora das contradições sociais do Rio de Janeiro no início dos anos 2010, assim como ao clima de expectativas crescente, da violência culturalmente legitimada desse período, certamente não se trata de um romance limitado à sua geografia e suas referências culturais - algo da beleza de O caso da borboleta, um dos contos de O sol na cabeça, livro de estreia de Martins, atravessa seu primeiro romance. Trata-se de um romance atento às contradições do desejo e da potência da vida sobre a morte: “era a vida - sempre ela e nunca a morte - o que fazia aquele chão tremer” (p. 337). Seria essa potência suficiente para reconciliar as contradições elaboradas no romance? Certamente, se não há utopia, há um quê de esperança no sentido mais abrangente do termo: o narrador termina por descrever o reencontro do grupo num baile funk, o primeiro desde a invasão. Lançado em 2022, portanto no início da segunda década do século XXI, Via Ápia configura um discurso concorrente com o tipo de discurso e prática política que caracterizou os últimos vinte anos do Rio de Janeiro, assim como aparece enquanto contradiscurso perante as megaproduções culturais que elevaram as forças policiais estatais à posição de heróis nacionais. Outros heróis, no sentido romanesco do termo, emergem a partir de Martins; menores, dotados de contradições humanas, será a partir desses sujeitos que a imaginação literária reconstruirá esteticamente os últimos vinte anos do Rio de Janeiro. Referências: ARANTES, Paulo. Novo Tempo do Mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2019. ROUSSO, Henry. A Última Catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Rio de Janeiro: FGV, 2016. LUKÁCS, Gyorgy. Soul and Form. Cambridge: MIT Press, 1978. MARTINS, Geovani. O sol na cabeça. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. [1]O termo aqui é usado seguindo a tese do historiador francês Henry Rousso em A Última Catástrofe, na qual as catástrofes são eventos de magnitudes “estruturantes” da realidade, cujo desenrolar reelabora condições objetivas e subjetivas num determinado tempo e espaço. [2]Sobre o tema da espera, tomo como base as reflexões de Paulo Arantes em Zonas de espera: uma digressão sobre o tempo morto da onda punitiva contemporânea, em Novo Tempo do Mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2019.
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