Brauner Geraldo Cruz Junior, doutorando em sociologia pelo IESP-UERJ e integrante do Grupo Casa.
Não é preciso se demorar no exame dos dados macroeconômicos para notar que (sobre)viver no (e ao) Brasil tem custado cada vez mais caro. Uma ida ao supermercado ou uma conversa pescada no meio da rua já são suficientes para sabermos que as contas das casas não estão fechando. Se os estratos altos e médios da população clamavam por uma redução no preço da gasolina e se o “mercado vê” (e prevê) quedas na inflação para o futuro, no presente as camadas populares e mesmo os setores médios se assustam com o aumento contínuo de preços de produtos que compõem a cesta básica. Itens como o óleo de cozinha, o feijão e o leite parecem indispensáveis na alimentação da população brasileira, mas já não são consumidos com a mesma frequência. A cebola e a batata, produtos agrícolas tão usuais e produzidos em solo brasileiro, já começam a ser trocados nas receitas por outras opções mais em conta. Voltemos aos poderosos índices e veremos: a inflação dos alimentos, aquela mais sentida pelas famílias mais pobres, acumulou 15% de alta nos últimos 12 meses, superando a inflação de outros produtos, como o combustível e a energia elétrica. Uma primeira consequência desse cenário é tragicamente usual na história brasileira: a fome e a insegurança alimentar. Se durante a década de 1990 convivíamos com campanhas periódicas de combate à fome, como o famoso “Natal sem Fome”, entre 2004 e 2014 observamos uma transformação radical nesse cenário, com quase 75% da população brasileira em segurança alimentar. Ficou famosa a imagem do país “saindo do mapa da fome”, uma conquista muito comemorada em 2014. Entre 2017 e 2018, porém, esse índice de segurança alimentar caiu para 63% e o Brasil voltou a figurar em tal mapa. Com a pandemia do novo coronavírus, o país registrou somente 42,5% de segurança alimentar entre 2021 e 2022. Estamos falando, portanto, de cerca de 125 milhões de pessoas que possuem alguma dificuldade no acesso aos alimentos, no pleno consumo do ponto de vista nutricional ou sem uma sustentabilidade nos processos produtivos. Em muitos casos, é a fome como costumamos abordar, uma insegurança mais severa; em outros, ocorrem situações quase tão preocupantes quanto, como o consumo repetido de produtos com baixo valor nutricional, que prejudicam o crescimento de crianças e adolescentes e comprometem gravemente a saúde da população. As recorrentes notícias de vendas de ossos e pele de frango, feijões quebrados e soros de leite ilustram esse panorama crítico. Outra consequência está associada a uma mudança nas estratégias de sobrevivência das camadas populares. O aumento no preço dos alimentos vai além de modificar os “padrões de consumo”, expressão que costumamos ouvir nos telejornais. Ele transforma os planos e projetos traçados e negociados no âmbito da casa, objeto de bastante atenção do nosso Grupo. Como já abordado em outros textos e publicações, entendemos a casa como além de uma edificação ou unidade doméstica. É também um espaço simbólico, onde são produzidos os afetos familiares, mas também os planos e estratégias econômicas tocadas por seus membros. Em pesquisas de campo individuais e coletivas que tenho feito no período pós-pandemia sobre a economia cotidiana de pessoas que possuem pequenos negócios em espaços periféricos, tenho notado uma série de situações em que essas mudanças nas estratégias de vida e de sobrevivência se fazem bastante latentes. Um exemplo está na educação alimentar dos filhos menores dessas famílias. Há crianças que sequer sentem falta ou manifestam gosto por carne bovina, pois acostumaram-se a comer proteínas mais baratas, como o frango e o ovo, e embutidos, como a linguiça. Há também uma diferença fundamental no período das aulas presenciais, que é quando essas crianças têm acesso às merendas, enquanto durante o fechamento das escolas, os pais encontraram maior dificuldade de sustentar a alimentação dos filhos. Na favela da Maré, o local onde tenho concentrado minhas pesquisas, é comum que aquelas pessoas que ali trabalham durante o dia, seja em casa ou em pequenos comércios, peçam comida dos próprios estabelecimentos lá presentes. Nos últimos meses, alguns dilemas se estabeleceram nessa relação: do lado de quem faz e vende a comida, há a necessidade de aumentar os preços de venda, já que os produtos comprados para preparar os alimentos ficaram muito mais caros. E do lado de quem compra, há o temor de que esse aumento inviabilize a compra rotineira desses clientes. As estratégias diante disso são bastante diversas. Quem vende busca fazer promoções, ampliar possibilidades no cardápio e na divulgação. Quem geralmente compra, passa a fazer refeições apressadas e de menor valor nutricional em casa ou segue comprando, mas optando pelas “quentinhas” desses estabelecimentos, a fim de dividir com outras pessoas da família, já que “a quentinha vem mais comida”. Essas mudanças vistas no cotidiano podem soar, apressadamente, apenas como alterações pontuais ou de menor impacto. No entanto, são responsáveis por transformações na organização das famílias e na redefinição de planos individuais e aspirações profissionais. O acesso à comida impacta, portanto, em muitas outras dimensões da vida no âmbito da casa. E inclusive atravessa marcadores de classe, raça e gênero, como demonstra análise recente sobre a maior insegurança alimentar em lares chefiados por mulheres ou pessoas negras. É por esse motivo que olhar para como acontece a alimentação nas casas e em espaços periféricos nos permite enxergar com a devida profundidade (e urgência!) para os efeitos dos constantes e preocupantes aumentos nos preços dos alimentos no Brasil. Chamar a atenção para a fome, e pautá-la no debate público, é também jogar luz à insegurança alimentar e a uma série de estratégias das famílias para sobreviverem a esse período trágico da história recente brasileira e darem continuidade a seus planos e aspirações de viver uma vida que mereça ser vivida.
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