Gustavo de Queiroz, Mestre e doutorando em sociologia pelo IESP-UERJ. Integrante do grupo CASA
Adiar ou proibir o carnaval não foi novidade para a cidade do Rio de Janeiro quando a Prefeitura, diante de um repentino agravamento da pandemia de coronavírus, optou por cancelar a festa de 2022 e transferir os desfiles das escolas de samba para abril. Fortes chuvas, epidemias e repressão policial já foram motivo para fazer cinzas da festa que antecede a quaresma, principalmente quando os foliões não tinham os ares afrancesados, ao gosto de nossas elites fluminenses. Apesar disso, como não nos deixam esquecer os anais da nossa história, transferir ou cancelar a festa nunca foi tarefa fácil para as autoridades municipais e, deveras vezes, acabou-se apenas como um decreto para inglês ver. Há de exemplo, ainda frente ao projeto das elites intelectuais e culturais fluminenses, em afrancesar a demasiada africana e lusitana cidade do Rio de Janeiro. Mesmo proibidas desde os tempos do Império, todas as mais diversas formas populares de festejar o carnaval pelos cariocas, pejorativamente apelidadas de entrudo pela imprensa, ainda versaram nas ruas do Rio com seus diabinhos, limões-de-cera, zé-pereiras e cucumbis até as décadas de 1920 e 1930, apesar da forte repressão policial. Indo além na nossa história, em 1892, há exatos 130 anos , quando era jovem a Velha República, a endemia de febre amarela, que lotou as enfermarias da cidade de 1868, nas primeiras décadas do século XX, também influenciou as autoridades municipais a adiar os desfiles carnavalescos de 1892, mas, desta vez, para o mês de junho, cujo clima ameno acreditava-se ser menos propício à febre tropical. Entretanto, o caráter infeccioso da combinação entre calor e carnaval se restringia apenas às vias públicas, pois os ball masques nos nobres salões das Grandes Sociedades seguiram autorizados para celebrar os dias de Momo em março. Diante da ordem de adiar o carnaval das ruas do Rio, os cariocas fizeram pilhérias ao decreto e, para não fazer desfeita, pularam duas vezes o carnaval naquele ano. Enquanto no verão, além das festas privadas nos clubes, os zé pereiras foram brincar o entrudo, no inverno, entre os arraiais juninos, a cidade fez-se novamente carnaval. Passados 20 anos, em 1912, mais uma vez por via de um decreto, as autoridades municipais decidiram por transferir o carnaval daquele ano, porém, dessa vez, para o mês de abril. Diante da morte do ilustrado Barão do Rio Branco, duas semanas antes do carnaval, nossas elites políticas acharam de bom tom adiar a festança a fim de prestar luto ao diplomata. O resultado não foi dessemelhante ao anterior e, outra vez, o decreto deu com burros n'água. Contudo, depois de 7 dias de choro, os foliões acharam que já se devia pôr fim ao silêncio do extenso velório e saíram às ruas com suas fantasias. Provando a vocação da cidade para festa, em abril os carioca colocaram os ranchos e cordões nas ruas numa grande festa no mês santo da Páscoa. Em 2022, diante da proibição dos blocos e transferência dos desfiles das escolas de samba para abril, os foliões cariocas, ao invés de guardarem-se por 1 mês e meio - ou até mesmo para o ano 2023 -, vestiram a fantasia e foram ocupar as ruas, quadras e praças da cidade, já nos finais de fevereiro e princípio março. Ademais, o decreto de cancelamento e adiamento do carnaval soou um tanto estranho aos ouvidos dos súditos de Momo da urbe sebastiana. Se as medidas para conter a emergência sanitária proibiram blocos e adiou para abril os desfiles das escolas de samba, ela fechou os olhos quanto às festas privadas, com aval para fazer farra da porta para dentro dos clubes, boates e casas de show. Seguindo a tradição, diante de uma proibição, os cariocas aproveitaram a deixa e a cidade, ao que tudo indica, viverá mais um célebre ano de dois carnavais. Antes da Quaresma, inconformados com os critérios sanitários que, em meio uma pandemia, concedeu às festas privadas o privilégio de não serem vistas como espaços contagiosos aos olhos do Município, os foliões mais afoitos declararam guerra ao decreto. Ao invés de marcha marcial, entoaram marchinhas carnavalescas, e no lugar de fardas verde-oliva, trajaram-se das mais coloridas fantasias, e, nos dias de Momo, tomaram o centro da cidade. Para além disso, se os portões fechados da Sapucaí foram um balde d’água fria sobre as escolas de samba, que não deixaram desanimar e fizeram um carnaval em suas quadras. Para além, sob o anúncio de rajadas de fogos de artifício, os tradicionais grupos de bate-bolas desfilaram pelas ruas dos subúrbios com suas luxuosas fantasias de clóvis. Agora, portanto, após a quaresma, a cidade se prepara novamente para ferver em 4 dias de carnaval fora de época. Excepcionalmente neste ano de 2022, as agremiações desfilarão neste próximo fim de semana, ao longo dos feriados de 21 e 23 de abril: durante a celebração do martírio do inconfidente Tiradentes, e as feijoadas, procissões e festas em devoção ao mártir São Jorge, co-padroeiro do Estado do Rio de Janeiro junto a São Sebastião, e que, particularmente nos terreiros do Rio, divide a data com o orixá Ogun. No entanto, é curioso que, apesar da duplicidade do carnaval denotar o valor e estima que carnaval detêm para muitos cariocas, ela, ao mesmo tempo, aponta as fraquezas e descasos com a maior festa e manifestação cultural e artística do país, que, apesar de mobilizar bilhões de reais todos os anos, ainda é tratada como mero festejo, em termos de financiamento.
0 Comments
|