Bárbara Amoras, doutoranda em Sociologia (IESP/UERJ). Mestre em Sociologia com concentração em Antropologia (PPGSA/UFRJ).
No dia 17 deste mês, celebrou-se o Dia Mundial da Reciclagem. A data, promovida pela União das Nações Unidas (ONU), tem como intuito promover campanhas de sensibilização visando um futuro sustentável. A reciclagem está inserida em diferentes agendas ambientais, especialmente no debate sobre o consumo consciente. No entanto, há várias camadas em torno deste serviço. Este texto convida o leitor para um olhar sobre o serviço da reciclagem através da relação entre morar e reciclar nas periferias urbanas, onde residem as pessoas que trabalham na reciclagem. Assim, escolhi as palavras de Carolina de Jesus para ilustrar o quanto esse serviço constrói a vida tal como ela se apresenta no cotidiano (Motta, 2014), assim como constrói também a cidade (Lima, 2023). E, principalmente, os desejos sobre uma vida que mereça ser vivida (Neiburg, 2022). Quem trabalha na reciclagem no Brasil? De acordo com o levantamento realizado pelo Movimento Nacional de Catadores (2017), cerca de 800 mil agentes ambientais, conhecidos popularmente como catadores de recicláveis, estão em atividade no Brasil. Neste levantamento, os dados indicam que 70% destes agentes são mulheres, que fazem deste serviço a sua fonte de renda. Estudos recentes (Lima, 2023) indicam marcadores sociais como gênero, raça, faixa etária como características que compõem o perfil dos profissionais da catação e que são também o cerne da discussão sobre racismo ambiental, isto é, a distribuição desigual dos efeitos climáticos. Dediquei parte dos meus estudos a analisar trajetórias e ingresso de pessoas no mercado de reciclagem (Amoras, 2022) e posteriormente às estratégias de vida de famílias no entorno de uma Estação de Transferência de Resíduos (Amoras, 2024). O que ambos os trabalhos indicaram é que a reciclagem surge em muitos núcleos familiares como estratégia de vida (Machado da Silva, 2018) que mobiliza uma economia cotidiana (Motta, 2014) nas periferias através de circuitos de trocas comerciais e/ou simbólicas. O que motivou a minha escolha por escrever sobre a reciclagem através desse enfoque foi deparar-me com a relação entre o ‘fazer as casas’ e a reciclagem, conhecendo a história de vida de um interlocutor que tem a casa como centralidade da estratégia de vida adotada por ele ao migrar da Paraíba para o Rio de Janeiro. Na literatura, as estratégias de vida são apresentadas como formas de administração do trabalho pela unidade doméstica. Elas conformam as mais distintas configurações de extensão do tempo de trabalho das camadas populares (Machado da Silva, 2018). Vale ressaltar que essas estratégias emergem em grande medida em contextos, configurações e repertórios de crises, de forma que a relação entre vida e economia se colocam a partir de nuances (Neiburg, 2022). A reciclagem como estratégia de vida Para melhor explicar esse conceito, escolhi contar a história de um interlocutor da minha pesquisa de dissertação, defendida em fevereiro deste ano no Programa de Pós-Graduação em Sociologia com concentração em Antropologia (PPGSA/UFRJ). A trajetória de vida de Seu Maneco tem na conquista da casa própria a sua maior realização – um marco na vida de um migrante nordestino/paraibano que se desloca ainda jovem para o Rio de Janeiro em busca de oportunidades. Com uma rede ínfima de familiares que seguiam esse projeto de migração para a então capital do Brasil, Maneco foi se estabelecendo na cidade através de formas populares de trabalho e foi ganhando a vida como camelô, chamador, ‘fazedor de bicos[2]’. Ele foi assim deixando a casa dos tios para conquistar sua independência e viver a cidade. Um dos ‘bicos’ dos quais ele se recorda era o de reciclar os materiais descartados próximo do seu barraco, conquistado através de uma ocupação nos arredores de São Cristóvão. A categoria barraco é empregada como uma forma de nomear moradias provisórias, com pouca infraestrutura e que envolve um processo de ‘fazer a casa[3]’. Maneco enfatiza que o barraco se difere da casa que ele construiu e que reside atualmente. Ele indica que a casa é a segurança de seus filhos e de suas próximas gerações, e que para erguer os três andares distribuídos entre os seus filhos foi o trabalho duro de uma vida inteira. Maneco não se reconhece como catador de recicláveis e conta que saía de casa em busca dos ‘bicos’, e que somente na ausência deles se dedicava a construir a própria casa, com os recursos encontrados na ‘xepa[4]’.Ele conta que se aproximou dos vazadouros de descarte ainda jovem e que trabalhava comprando garrafas de catadores para venda em um pequeno comércio na região de São Cristóvão. E assim se deparou com materiais de construção em condições próprias ou de pequenas adaptações para uso, o que o aproximou do vazadouro de ‘lixo[5]’ e que lhe permitiu descobrir novas possibilidades naquele espaço. Seu grande interesse estava em torno dos descartes da construção civil e, sobretudo, dos descartes das grandes obras em torno da abertura da avenida Brasil, que lhe permitiram realizar o seu objetivo de erguer a casa e deixar para trás o barraco. Maneco conta das vigas que recolheu de lá para erguer a sua casa com a ajuda de outros moradores e das trocas de materiais reaproveitados com pequenos lojistas ou com prestadores de serviço de conserto que lhe permitiam ir fazendo a casa. Relatava também que se deparava com pessoas com objetivos distintos, que se dedicavam a todo o tipo reciclagem ou garimpo de papel, garrafa, papelão, tecido, produtos alimentícios, dentre outros, que se constituía formas de fazer dinheiro. Por que a casa? O fragmento a que se refere o título do texto foi extraído do livro “Casa de Alvenaria” (1961) da escritora Carolina Maria de Jesus. Na literatura e na vida da escritora, a casa emerge como a imagem e semelhança de um sonho comum ao de Seu Maneco e de muitos que se estabelecem nas periferias urbanas de todo o país. A casa de alvenaria, às vezes dentro, outrora fora das comunidades nas periferias urbanas, engendra formas de tecer a vida. Conforme pontuado por Motta (2021), a casa expressa uma forma de estar na cidade, a realização da possibilidade de uma experiência urbana. Por isso a relação entre morar e reciclar acontece de maneira imbricada. Referências AMORAS, Barbara da Costa. “Aqui não é lixão, é reciclagem”: um estudo de antropologia das políticas públicas sobre o caso da coleta seletiva na costa verde, 2022. Monografia (Graduação) – Departamento de Geografia e Políticas Públicas, Universidade Federal Fluminense, Angra dos Reis, 2022. AMORAS, Barbara da Costa. “Xepa do Caju”: estratégias de vida, expectativas e promessas em torno da usina de reciclagem e compostagem do Caju no Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Sociologia – com concentração em Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2024. JESUS, Carolina Maria de. Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada. Rio de Janeiro, Editora Paulo de Azevedo, 1961. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Ed Zahar, Rio de Janeiro, 1973. LIMA, Maria Raquel Passos. Antropologia dos resíduos: uma agenda de pesquisa para o estudo das cidades na era das mudanças climáticas. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, v. 20, p. e20912, 2023. MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. Estratégias de vida e jornada de trabalho. In Cavalcanti, M.; Motta, E; Araújo, M, O mundo popular: Trabalho e condições de vida. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. Pp. 61-73. [1984] 2018. MOTTA, Eugênia. Casas e economia na favela. Vibrante: Antropologia Virtual Brasileira, v. 11, p. 118-158, 2014. MOTTA, Eugênia. Fazendo casas, pessoas e mundos (no Recôncavo baiano e em uma favela carioca). Mana, v. 27, 2021. NEIBURG, Frederico. Buscando a vida na economia e na etnografia. Mana, v. 28, 2022. [2] Formas populares de trabalho que se dedicam a prestação de serviços de curto prazo. [3] Se refere ao processo de construir um imóvel. [4] Categoria nativa, se refere a catação em locais destinados ao transbordo de materiais descartados. [5] Categoria nativa, refere-se a resíduos ou recicláveis que são transformados ou operacionalizados através do serviço de reciclagem. A categoria designada aos descartes sem possibilidade de recuperação é rejeito.
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