Ana Priscila Alves, mestranda em sociologia e integrante do Grupo Casa.
Dentre os bairros mais saudosistas e boêmios da Zona Norte do Rio, está Vila Isabel. Neste bairro, há uma rua residencial com extensão de aproximadamente 1km, a Rua Pereira Nunes. Partindo da primeira casa da rua, ela não parece muito diferente de qualquer outra de Vila Isabel: condomínios, alguns restaurantes e botecos, padarias, prédios altos e baixos, alguns deles com bandeiras do Brasil penduradas nas janelas. Já próximo aos seus últimos números, começa uma sensação de insegurança, de estar num local “esquisito”, que tem seu auge no cruzamento com a Rua Teodoro da Silva e a Avenida Professor Manoel de Abreu. Porém, é só atravessar que esta sensação vai embora e é substituída por um mar de pinturas e fitilhos verdes e amarelos. Daí, vem a compreensão: nesta caminhada, o correto é começar pelo final. No último ponto da Pereira Nunes, estão as boas-vindas a quem chega “à rua mais bonita do mundo”. Desde 1982, os moradores se organizam para enfeitar o local no período da Copa. Em entrevista à Fox Sports Brasil, Celso Mendes, administrador da Galera da Pereira Nunes, diz que é um trabalho coletivo: "a gente pede ajuda aos moradores, a gente faz vaquinha entre a gente, fica de madrugada todo mundo com a tesourinha cortando bandeirinha". O esmero e a coletividade ficam nítidos nas artes da rua. E a sensação de segurança passada também não é por acaso. Nas falas de Celso, é recorrente a preocupação e desejo de que a rua continue sendo um espaço das crianças. Para ele, a insegurança e um maior interesse pela tecnologia é o que tiram os mais novos de lá. Outro temor apontado pelos moradores é a perda da tradição Brasil afora, que faz com que a prática de enfeitar as ruas para a ocasião se torne cada vez mais rara. Assim, a tradição e o anseio pelo novo andam o tempo todo lado a lado. O orgulho da memória aparece nos muros por meio de figuras como Pelé e Garrincha. No chão, por outro lado, as pinturas de Casimiro Miguel, Diogo Defante e Luva de Pedreiro, ícones jovens da internet, evidenciam que aquela manifestação é um encontro de gerações. A Galera da Pereira Nunes – como se intitula o grupo que organiza a rua nas copas – sabe que a manutenção desta prática dá voz aos moradores. Celso aponta que mais de 40 países e diversos meios de comunicação já visitaram a rua, e diz ter certeza de que o mundo olha para lá de alguma forma, não apenas nas diversas competições que ela participa, já tendo sido premiada em quatro. Em 2022, eles entenderam que o recado que poderiam passar seria de enfrentamento ao racismo que muitos jogadores têm sofrido na Europa, destacando Vinicius Junior nos desenhos e nas falas. Nos muros e no chão, frases como “unidos contra o racismo” e “não ao racismo” aparecem com destaque. A organização não perde a oportunidade de trazer uma mensagem além dos jogos, pois sabe que esta é uma oportunidade pontual. Em qualquer outro período, o ato de pintar e interditar as ruas não seria tão simples assim. Em tempos rotineiros, qualquer intervenção desse tipo demandaria autorização da prefeitura, ou poderia sofrer penalidades, como multas ou até mesmo formas de criminalização, como acontece com a cultura do Graffiti e, sobretudo, do picho. Na Copa do Mundo, porém, a tradição e organização de moradores nas ruas faz com que essa regra se flexibilize. Um exemplo disso é a cidade de São Paulo, que em 2014 e 2018, em contradição à Lei Cidade Limpa e à Lei Antipichação, houve liberação da prefeitura para pintar e enfeitar as ruas. Esta incongruência gerou conflitos e debates, tanto entre os moradores, que, naquele momento, poderiam ter seus muros pintados sem autorização, como entre os artistas de rua que, apesar de respeitar a tradição, questionavam por que são criminalizados em todos os outros períodos, exceto durante a Copa do Mundo, quando podem ter sua arte demandada e exposta. Desta forma, a antiga prática ganha outro sentido, além de torcer pela seleção: torna-se direito à expressão popular e a repensar a própria rua em que se vive na cidade, criando laços de coletividade e solidariedade, e reinventando a ocupação das ruas por adultos e crianças. É por isso que Celso Mendes finaliza uma de suas muitas entrevistas, desta vez ao canal Jogada 10, dizendo: “não tenho como falar pra você o quanto é importante isso daqui para a gente. Se é importante para o mundo, imagine para a gente”. Há 10 copas, a tradição e a Rua Pereira Nunes são feitas, desfeitas e refeitas, como forma de auto organização e resistência. O direito à cidade decerto passa pelo direito à própria rua.
1 Comment
5/9/2023 07:10:13 pm
Agradeço a Ana Priscila Alves por compartilhar conosco a história da Rua Pereira Nunes em Vila Isabel e como os moradores se organizam desde 1982 para decorar a rua durante a Copa do Mundo, proporcionando um espaço de segurança e alegria para a comunidade. É inspirador ver como a tradição é mantida e como ela se adapta aos novos tempos, incorporando mensagens importantes, como a luta contra o racismo. A rua é um exemplo de como a expressão popular pode ser uma ferramenta poderosa para conectar as pessoas e expressar ideias importantes, e espero que ela continue sendo uma referência de tradição e inovação por muitos anos.
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