Hellen Oliveira, doutoranda em sociologia pelo Iesp-Uerj e integrante do Grupo Casa.
Em seu livro “Musicking – The meanings of Performing and Listening” de 1998, Christopher Small tece uma descrição aprofundada sobre os sentidos da performance e da escuta em ambientes socialmente delimitados. O autor argumenta que durante o período inicial da modernidade, uma parte significante das instituições governamentais adotou a tendência de ilustrar sua organização por meio da construção de espaços delimitados voltados para uma certa parte de sua população. Estes serviam como cenário para que pudessem realizar suas atividades coletivas. Em grande maioria, tais estruturas eram reservadas a grupos socialmente privilegiados. Uma das construções mais marcantes da época foram as salas de concerto, que tinham como função organizar a música (e parte da cultura) hierarquicamente. O considerado clássico, erudito, técnico, e digamos, melhor posicionado na hierarquia, estava reservado para a apreciação dentro destas salas. Como aspecto peculiar deste espaço o autor ressalta sua delimitação restritiva. Os locais de interação são propositalmente separados do local reservado para a audiência durante os concertos, onde as cadeiras são marcadas e distribuídas de forma a vetar a conversação entre a audiência. Outro ponto de restrição é a impossibilidade de interação entre público e músicos, e o completo silêncio necessário entre um e outro ato, de forma que as reações são reservadas apenas para o final da apresentação. Quando imaginamos a arena, do começo do século XX, narrada por Small (1998), não erroneamente correlacionamos adjetivos levantados pelo próprio autor para descrevê-la: rigidez, austeridade e silêncio. Isto levanta uma série de questionamentos pela ideia que se tem da música enquanto um objeto de aspirações, espontaneidade e liberação, ao mesmo tempo em que o autor argumenta que a forma clássica é vista como base para outras formas de performance. Somado a isto, tem-se a noção de que nos concertos clássicos, o decorrer das atividades possui uma liturgia muito específica, seguida ao longo do espaço-tempo. Partindo deste prisma, temos uma correlação de forças estrutural e estruturante do problema musical, e daquilo que envolve o uso da música na vida social: o desprendimento com a forma, da performance e da escuta pode ser considerado um desrespeito às normas daquilo que se coloca como elemento fundador da musicalidade: a técnica e a liturgia da música clássica. Pode-se argumentar que este tipo de correlação está vedado aos espaços musicais. Entretanto, a leitura de Small (1998) pode nos ser útil para pensar situações para além das paredes de uma sala de concerto, em outras arenas em que, apesar de outras liturgias, a tensão entre o clássico e o popular pode ser pensada a partir deste prisma, em outros contextos. Façamos, então, um exercício de imaginação sobre uma arena em que a técnica esteja presente, mas que seus atributos estruturais sejam o inverso do cenário descrito por Small (1989): a interação é permitida e encorajada em todos os locais dentro desta arena, não existem cadeiras marcadas, e não há barreira entre a reação direta do público a cada ação daqueles que estão no centro das atenções. Se você imaginou o antigo Maracanã com a Geral lotada em dia de clássico, você não está errado. A estrutura da geral evoca o encontro, a interação, o encostar, e a reação quase instantânea da torcida aos toques dos jogadores é como um estímulo ao centro do campo, a negação completa da separação entre palco e plateia. E é neste cenário inverso, de uma partida de futebol, a tensão aparece mais forte do que nunca. Em tese, por conta de sua própria característica de delimitação espacial, um estádio deveria seguir uma própria liturgia que coordena a relação entre audiência e “espetáculo” – neste caso na figura da partida. O que complexifica este processo é o fato de que a própria liturgia do futebol agrega atributos que extrapolam o espaço reservado para a ocorrência dos jogos, e não apenas pelo contato direto e contínuo com a arquibancada. A espacialidade de um estádio é uma espécie de avesso dos “não lugares” (Augé e Mucznik, 2005), que se tratam, em suma, de espaços de grande circulação que não fixam necessariamente alguma história social, cultural ou política. Um estádio pode ser interpretado como uma soma de lugares que só se conectam por conta da história social que ali é construída, e que depende fundamentalmente das relações entre audiência e espetáculo, e com aqueles que acompanham pelo lado de dentro do espaço delimitado, e aqueles que acompanham ao lado de fora. A infraestrutura construída pelo fluxo de pessoas que frequentam as partidas, estabelecimentos formais e informais que provém o necessário para o público antes da entrada no estádio, e por vezes durante a partida, no caso daqueles que não a acompanham de dentro dele; mas onde as salas de concerto e os estádios se encontram, para além do espetáculo e do fato de serem estruturas pensadas para organizar o espaço de lazer? Sua relação complexa de criação de hierarquia quando relacionada à modernidade, ou melhor, o ideal do que é “moderno”, “civilizado” e “correto”. No ano de 2013 o Maracanã passou por uma série de reformas que visavam o enquadramento do espaço nos padrões da FIFA, em decorrência da Copa do Mundo de 2014 sediada no Brasil. Conforme argumenta Tavares et. al (2010), as mudanças nos espaços se relacionam com as transformações comportamentais dos grupos sociais, e os estádios estão inclusos neste processo. Para os autores, este é um processo de modernização que segue, sobretudo, vieses econômicos. Estes, por sua vez, hierarquizam a dinâmica dos jogos por meio da distribuição da audiência no espaço. A substituição da geral por cadeiras, o aumento do custo dos ingressos e dos itens de consumo dentro dos estádios são alguns dos efeitos que afastam parte da população deste espaço. Não é incomum, após as reformas de 2013, que se ouça a frase “ódio eterno ao futebol moderno”, e isso não está relacionado ao aprofundamento das técnicas dos jogadores e técnicos, tampouco com a entrada de mecanismos tecnológicos como o VAR. O incômodo causado é a aproximação da estrutura de sala de concerto à uma forma de lazer cuja extrapolação do espaço interno e externo, e a relação entre audiência e “espetáculo” são fundamentais. O canto das torcidas, os bares no entorno, a economia local construída pelo futebol, são todas partes constituintes do próprio esporte, que dão sentido à prática. A mudança forçada de liturgia desequilibra o andamento dos jogos. O futebol moderno pode ser visto, por fim, como o processo de castração de sua própria matriz existencial. Referências AUGÉ, Marc; MUCZNIK, Lúcia Liba. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade, 2005. SMALL, Christopher. Musicking: The meanings of performing and listening. Wesleyan University Press, 1998. TAVARES, Ana Beatriz Correia de Oliveira et al. Estádio do Maracanã: percepções a partir da reestruturação arquitetônica de 2010. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 40, p. 205-212, 2018.
1 Comment
4/30/2023 09:23:57 am
Você também pode confiar no futemax ou https://futemaxaovivo.tv/ para ver mais ações e blogs de futebol, mas este artigo é tão útil e confiável que os leitores podem realmente utilizá-lo e apreciá-lo, quer estejam assistindo ou jogando futebol.
Reply
Leave a Reply. |
Blog Terças de CASA
Histórico
Setembro 2023
|