Giovanna Lucio Monteiro, mestranda em sociologia pelo IESP-UERJ e integrante do Grupo Casa.
Os diferentes tons de terra que compõem as casas, que se arrumam uma em cima das outras desafiando a engenharia e a gravidade, compõem a paisagem de muitas favelas do Rio de Janeiro. Em meio aos tijolos, pinceladas de azul formam as caixas d’água que somem aos nossos olhos pelo costume, mas nos mostram que, na cidade que possui água em seu nome, o acesso a esse recurso é escasso. A caixa d’água, elemento comum da paisagem urbana, é uma solução provisória para a escassez: como não há fornecimento hídrico suficiente, a caixa armazena a água para que as famílias consigam utilizá-la mesmo nos momentos de crise. O problema é que ela também significa água parada, acúmulo de resíduos e um peso gigantesco sobre as habitações. As caixas d’água, os “gatilhos” nos canos de água da CEDAE/Águas do Rio, os poços comunitários e as muitas outras soluções locais para fornecimento de água nos lembram que a água não é um recurso tão natural quanto nós pensamos e que o acesso a ela está relacionado aos diferentes níveis de cidadania que a cidade “maravilhosa” abarca. A classificação dessas áreas como “zonas de risco” muitas vezes foi usada para justificar a falta de estruturas de saneamento básico pela dificuldade de mapeamento e de entrada das companhias nas favelas. Mas não se vive sem água, então desde a construção das casas passam a ser pensadas - pelos moradores e por grupos armados - formas de burlar esse não-fornecimento formal. Em alguns lugares, gatilhos de água são puxados de redes formais próximas e construindo um complexo quebra-cabeça de canos que perpassam os becos e ruas, desviam de casas e se multiplicam por dentro da favela. Em outros, poços artesianos privados ou coletivos são a única fonte de água por não haver encanamento. E, em muitos outros, a água precisa ser comprada de caminhões-pipa ou em galões, levando até a formação de “máfias da água”. Mesmo quando há algum nível de fornecimento de água, ela normalmente é insuficiente para a favela toda, o que torna comum a figura do manobrista de água nas comunidades. Essa pessoa, normalmente um morador contratado pela companhia de água, é responsável por “manobrar” a água de um lado para o outro na rede de canos formais e informais. No caso do morro da Providência, por exemplo, quando a água é manobrada para o encanamento “novo”, as casas que tem o fornecimento dado pela rede “antiga” ficam sem água, e vice-e-versa. Essas estratégias e a escassez também transformam a água em um recurso de profunda disputa: casas mais perto de canos formais recebem uma água mais limpa e com uma pressão maior, diferentes tipos de canos tem graus distintos de contaminação, as manobras da água são fonte constante de disputa e negociação além do enorme mercado que essa escassez produz e que é disputado por grupos armados. As múltiplas estratégias locais de ter acesso à água tornam os dias nas casas repletos de cálculos para o uso dessa água. A maioria das funções do dia a dia dependem desse recurso, e quando ele é continuamente escasso, é necessário entender a vida a partir do tempo da água. Fazer comida, tomar banho, lavar roupa, limpar a casa e fazer um café são ações comuns do dia a dia e que passam a ser calculadas a partir de quando a água chega. Em lugares em que a água chega somente uma vez na semana, como é o caso de vários bairros da Baixada Fluminense, do subúrbio e de favelas da cidade do Rio, ela deve ser armazenada e o seu uso calculado ao longo desses dias. Em algumas casas, a caixa d’água cumpre essa função, em outras, são barris e recipientes menores que são deixados “descansando” até a sujeira decantar e a água poder ser usada. Esse tempo da água é na maioria das vezes administrado por mulheres, que estabelecem uma rotina doméstica a partir da disponibilidade de água. Nos últimos sete meses, a concessionária Águas do Rio tem investido em obras de extensão e manutenção da rede d’água de grande parte do Rio de Janeiro. Junto com elas, chega a conta que de uma hora para a outra precisa fazer parte do orçamento das famílias, mesmo se o serviço ainda não tem funcionamento pleno. No tempo da água das famílias é adicionada a temporalidade do boleto, que é contado pelo hidrômetro mas controlado no dia a dia. A empresa diz que irá ampliar a tarifa social para cobrir mais áreas do estado, mas mesmo com esse aumento ainda vão ter regiões em que a conta completa vai pesar no orçamento. Antes da concessão, a CEDAE dificilmente cortava o fornecimento de água em caso de não-pagamento por ser um empresa estatal, mas pesquisadores mostram que em outros casos de concessão a empresas privadas a água foi cortada e o fornecimento para “áreas de risco” continuou escasso. O medo dessa mudança tem levado a uma cobrança constante por parte das associações de moradores em diferentes lugares do estado, que tem se reunido com representantes da concessionária para cobrar aquilo que foi prometido. Entre promessas e incertezas, as mudanças provocadas pela Águas do Rio entram na administração do tempo da água nas habitações. A cidade da Baía de Guanabara, dos rios e aterros produz diferentes níveis de desigualdade no acesso à água. Aqui, onde os rios poluídos correm para boa parte da população receber água dia sim, dia não, ter uma caixa d’água se torna luxo, e a vida é construída em meio às estratégias hídricas de sobrevivência.
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