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June 28th, 2022

6/28/2022

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A(s) Baía(s) de Guanabara e a concessão do saneamento: o que esperar?
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Michel Misse Filho, doutorando em sociologia pelo IESP – UERJ e integrante do grupo Casa

Idílica, poluída, bela ou cloaca. Território-em-comum metropolitano e cartão-postal nacional. Na realidade, a Baía de Guanabara, espelho d’água que transborda por seus rios e tecido urbano, é mais do que mero ambiente e pano de fundo da metrópole: a esta se entrelaça, reflete seus problemas, disputas e é agente direto em suas configurações urbanas e sociais. Analisá-la é tarefa complexa, mas convém mencionar seus processos, frequentemente centralizada em estereótipos e ofuscada por estigmas.

​A centralidade que a baía logrou até meados do século XX é notória, por exemplo, com a ocupação da cidade às suas margens, antes da expansão rumo às praias oceânicas; a importância portuária num país escravocrata; as representações deslumbradas de estrangeiros; e desaparecidas praias como ainda incipientes lugares de sociabilidade. Em seguida, o avanço da ocupação urbana sem a devida ampliação sanitária levou-a, de 1970 em diante, à chaga de uma poluição intrínseca, supostamente enraizada, do(s) território(s) estigmatizados como fétidos — e do mau-odor para os transeuntes do Aeroporto Internacional.

É ilusório, todavia, mencioná-la de forma unívoca. São muitas baías dentro da Guanabara, e quem parece ter esse conhecimento, além do povo fluminense, é a nova responsável pelo trato de suas águas: a concessionária “Águas do Rio”, que há sete meses opera o saneamento básico de grande parte da região. Pulemos, neste texto, o que concerne ao abastecimento de água, tarifas, contrato e análises sobre privatização. Aqui a promessa-mor, como muitas já feitas desde a década de 1970, é a de investir maciçamente no tratamento de esgoto — o que, por consequência, também despoluiria a própria baía.

A concessionária, no entanto, arrisca trocar a ordem dos fatores e alterar o produto. “Despoluir” (sic) a baía antes de prover esgotamento à população — como assim? É o que sugere um projeto exposto em reportagem da Folha de São Paulo, pouco após o início da concessão, visando primeiro a construção de coletores de esgoto em “tempo seco”: isto é, adiando as obras de tubulações exclusivas de esgoto nas casas, para apenas interceptá-lo na rede de águas pluviais antes de chegar aos rios. É “tempo seco” pois nas chuvas o sistema não dá vazão e as comportas se abrem — com elas, reabre-se também a janela de doenças vindas das enchentes e valões. A (incompleta) despoluição da baía, histórica causa socioambiental, estaria, em alguma medida, “furando a fila” da população.

Não cabe questionar o empreendimento em si — inclusive parte dos técnicos são favoráveis à medida, mas desde que em caráter complementar. Acontece que sem o paralelo investimento no esgotamento na casa das pessoas, a prioridade da ação ignora a desigual e alarmante situação do saneamento fluminense, também refletido em suas “muitas baías”. No lado externo da Guanabara e logo após sua entrada, a Zona Sul carioca e Niterói, com exceção das favelas, ostentam índices de tratamento de esgoto muito acima da média. À medida que se avança rumo ao fundo da baía — e, portanto, às periferias majoritariamente negras — o tratamento de esgoto virtualmente inexiste. No limite deste gradiente, quatro cidades da bacia hidrográfica da baía (São Gonçalo, São João de Meriti, Belford Roxo e Duque de Caxias) estão entre as dez piores do país em saneamento básico[1]. Destas, são as únicas fora das regiões Norte e Centro-Oeste.

O diagnóstico nos leva ao racismo ambiental, e mitigar os danos puramente “ambientais”, passando ao largo das pessoas, pode inclusive acentuar os contrastes. Na prática, o limitado potencial de despoluição de tais medidas emergenciais dificilmente permitiria a utilização segura de praias periféricas. Na fila da balneabilidade, quem larga próxima de um lugar ao sol são as praias de apenas uma “das baías” — poluídas, mas nem tanto —, notadamente aquelas vizinhas ao Pão de Açúcar. A concessionária, que busca um bom cartão-de-visitas para ampliar sua atuação Brasil afora, deve saber disso: uma de suas primeiras ações buscou transportar as poluídas águas do Rio Carioca para o emissário submarino de Ipanema, visando melhorar a qualidade da Praia do Flamengo, zona sul carioca.

Se é que surtirá efeito, não se trata de negar a importância imensurável da recuperação destes lugares — mas desde que não só destes. O último texto publicado neste Blog, por Clara Polycarpo, retomou as disputas em torno do território praiano carioca, seus imaginários e as segregações sociais e raciais subjacentes — corpos controlados e amontoados em ônibus lotados rumo à brisa do mar oceânico e historicamente higienista da Zona Sul. Para “a” praia que se pretende “democrática”, urge então olhar para toda a orla da cidade-metropolitana, capilarizada ao redor do fundo da baía. Sem subterfúgios de infraestrutura, significa sair do século XIX em matéria de saneamento.

Daquele século para cá, dentre os muitos olhares-comum, pouco parece sobrar de uma baía de “magnificência” e “deleites”, citada por Darwin e Melville. Quem sabe um “porto que poderia conter todos os navios da Europa”, como registrou Auguste de Saint-Hillaire. Seu conterrâneo Lévi-Strauss chegou mais perto, mas a “bela e banguela” baía a que ele se referia era só por estética, pelos morros espaçados entre si — se fosse benguela, do povo banto, condiria mais com a realidade deste recôncavo. No fundo, a Guanabara engloba tudo isso e, como a cidade, permanece em constante disputa. Enxerguemo-la por entre e além dos golfinhos mortos, desastres ambientais e cartões-postais: uma baía de desigualdades, enfim.   


[1] Dados do “Ranking de Saneamento” de 2021, do Instituto Trata Brasil, com informações do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). 

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