O avesso da mesma história: o lugar ocupado pelos monumentos negros na cidade do Rio de Janeiro11/24/2022 Soaia Santos, doutoranda em sociologia pelo Iesp-Uerj e integrante do Grupo Casa.
No ano do bicentenário da Independência do Brasil e no mês que se comemora o Dia da Consciência Negra, é interessante observar quais são as histórias que as cidades nos contam através dos monumentos presentes em seus espaços públicos. E como a presença negra e indígena está inserida nesses lugares. No Brasil, o encontro entre os diferentes povos por muito tempo foi retratado sob a ótica dos “vencedores”. A história oficial cumpria assim seu papel de silenciar e apagar outras narrativas que não fossem a dos colonizadores. Os monumentos de personalidades que marcaram a história simbolizam a cultura e a identidade de um país. Nesse sentido, o processo de escolha desses monumentos é marcado por disputas e negociações, por um lado, entre os elementos que retratam a unidade da nação e, por outro, entre os que representam a diversidade brasileira. Na cidade do Rio de Janeiro, antiga capital do país, os monumentos mais conhecidos que fazem referência a personalidades negras estão situados na região central da cidade. Não por acaso, lugar onde está a Pequena África carioca. Dentre os monumentos, dois representam homens negros – Zumbi dos Palmares (1655-1695) e João Cândido (1880-1969) – e dois representam mulheres negras – Mercedes Baptista (1921-2014) e Marielle Franco (1979-2018). Ao passarmos pela Avenida Presidente Vargas, uma das principais do Centro do Rio, entre um movimento intenso de veículos, podemos ver o busto de Zumbi dos Palmares. O monumento foi idealizado pelo então senador Darci Ribeiro (1922-1997) com o intuito de homenagear o líder quilombola e fortalecer a consciência negra. A escultura em bronze sob um pedestal em formato de pirâmide, possui dois metros de altura e foi produzido por Romeu Alves e inaugurado em novembro de 1986. Recentemente, no dia 22 de novembro, foi reinaugurada pela Prefeitura do Rio de Janeiro, a estátua de João Cândido, líder da Revolta da Chibata, também conhecido como o Almirante Negro. Agora localizada na Praça Marechal Âncora, de frente para a Baía de Guanabara, o monumento assinado por Valter Brito e doado à cidade pela Secretaria Especial de Igualdade Racial em 2007, foi primeiro instalado no Museu do Catete e um ano depois na Praça XV, onde ficava escondido atrás da estação de VLT. No Largo de São Francisco da Prainha, um dos pontos do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, nos deparamos com a estátua de Mercedes Baptista, primeira bailarina negra do Theatro Municipal e uma das maiores percussoras do balé e dança afros no Brasil. O monumento de autoria de Mario Pitanguy foi inaugurado em 2016. Já em julho de 2022 foi inaugurada a estátua em bronze de Marielle Franco, localizada na Praça Mario Lago, lugar onde a ex vereadora relatava sua atuação na câmara. O monumento foi doado pelo Instituto Marielle Franco. A existência dos monumentos citados acima está atrelada à atuação de movimentos populares e de lutas antirracistas e anticoloniais, em prol de uma política de memória democrática, por meio da humanização e inclusão de grupos considerados subalternos. Apesar da presença de monumentos públicos que simbolizem personalidades negras e femininas, esses são minorias em relação ao total de 358 estátuas e bustos espalhados na cidade carioca, como é o caso, também, da cidade de São Paulo. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Polis aponta que dentre os 377 monumentos catalogados em São Paulo, apenas cinco são de pessoas negras, sendo quatro deles representados por homens negros e apenas um representado por uma mulher negra. Recentemente, foi incendiada a estátua do bandeirante Manuel de Borba Gato, um símbolo de heroísmo, que ao mesmo tempo simboliza a violência contra negros e indígenas que foram escravizados e dizimados no passado. A estátua assinada por Júlio Guerra foi inaugurada em 1963 e instalada na Praça Augusto Tortorelo de Araújo, Zona Sul de São Paulo, sendo considerada um dos monumentos mais controversos do país. A destruição e o abandono dos monumentos existentes nos espaços públicos evidencia que a história não se resume a heróis/heroínas versus mocinhos/mocinhas. Para além desse binarismo, a disputa de narrativa em torno das personalidades nos mostra que “tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado” como no verso da canção “História pra ninar gente grande”, ao mesmo tempo em que ressalta a importância de personalidades negras para além de sua condição de desumanização e vítimas, mas como sujeitos ativos de sua própria história e da história do Brasil. Uma política pública da memória, pautada em princípios democráticos, implica em uma reflexão crítica da memória e do nosso passado histórico. A preservação dos monumentos, como, por exemplo, estátuas e bustos, perpassa pelo significado que as pessoas atribuem a eles, ou seja, somos nós que os mantemos vivos. Que história queremos que a cidade nos conte através dos monumentos? Quais são as memórias que temos? Diferente da história, “a memória é uma ilha de edição”, como disse Waly Salomão. Então, quais memórias queremos construir para as nossas cidades?
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