Luiz Henrique Campos, doutorando em Sociologia IESP-UERJ e pesquisador integrante do Grupo Casa e do NuCEC. No mês da consciência negra, no dia dois de novembro, a comunidade quilombola de Pinhões, localizada em Santa Luzia, Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), celebrou mais uma missa em memória de seus antepassados escravizados, enterrados no denominado “cemitério dos escravizados” da comunidade. Realizado há mais de trinta anos, o ritual da missa como celebração da memória relembra a trajetória de opressão sofrida pela população negra e sua resistência reforçando a identidade coletiva da comunidade. Recentemente, a missa tem atualizado a resistência frente a luta territorial travada na disputa sobre um projeto de estrada que propõe reformatar a paisagem do espaço metropolitano aliando Estado e o capital neoextrativista da mineração: o Rodoanel. Em dezembro do ano passado, o governo estadual anunciou a homologação da licitação do projeto do Rodoanel como a “maior parceria público-privada da história do Estado” (Minas Gerais, 2018). As obras da rodovia e sua administração foram arrematadas pela empresa Italiana INC S.P.A., por um período de trinta anos. Além dos aproximados R$ 2 bilhões a serem investidos pela empresa, o restante dos recursos financeiros são oriundos do acordo feito com a mineradora Vale S.A. pelo crime cometido com o rompimento da barragem de rejeitos em Brumadinho, cerca de R$ 3,07 bilhões. Com a proposta de ser um “corredor logístico eficiente, capaz de conectar importantes regiões do país, fornecendo segurança e fluidez ao tráfego comercial” (Minas Gerais, 2008) o Rodoanel é parte do projeto de cidade alicerçado na ideologia do desenvolvimento e construído pela narrativa da modernização e do crescimento econômico, conduzido pela política neoliberal do governo Romeu Zema. No desenho atual do projeto a obra da estrada reproduzirá (i)mobilidades e desigualdades na produção do espaço urbano, onde núcleos urbanos serão cortados, populações removidas, represas e nascentes afetadas gerando grande impacto no abastecimento hídrico de grande parte da RMBH. Ademais, sítios arqueológicos correm risco de serem demolidos, além de comunidades tradicionais sofrerem com consequências em relação ao seu modo de vida, com a especulação imobiliária e com o crescimento de loteamentos irregulares. Todos esses danos são desconsiderados pela narrativa do crescimento econômico e da modernização da malha rodoviária em prol da formação de um regime de circulação vinculado à atividade predatória extrativista da mineração, principal financiadora e beneficiária direta da obra, com o transporte do minério sendo feito para o parque industrial metropolitano ou para exportação, além da circulação de pessoal, peças, tecnologias e maquinário fortemente vinculado ao trânsito internacional, tendo a entrada-saída pelo Aeroporto Internacional Tancredo Neves[1]. O quilombo de Pinhões é uma das comunidades afetadas pelo projeto. Com suas origens no século XVIII na antiga sesmaria de Bicas, a comunidade se forma vinculada à ocupação de terras de fronteira contra possíveis invasões da sesmaria vizinha[2] - fato central que ainda marca a identidade de seus membros como “guardiões do lugar”. Data do mesmo período a criação de um cemitério privado pelo então proprietário da sesmaria de Bicas, para a realização de enterros de escravizados e negros alforriados e seus descendentes vinculados à sesmaria. Para além da questão sanitária, o cemitério foi e é lugar de realização de cerimônias e cultos fúnebres e religiosos, antes pelos escravizados, agora pela comunidade e por religiões de matriz africana. Cruzeiro ao centro do cemitério dos escravizados. Na cruz, cartazes fixados tendo escrito o nome de escravizados ali enterrados. – Fonte: Luiz Campos (2023).
Se antes ser “guardião do lugar” vinculava a população negra ao regime escravocrata, atualmente a proteção do território ainda está direcionada à luta contra o racismo, agora na produção das cidades e suas dinâmicas de desigualdade. O desenho atual do projeto do Rodoanel propõe o traçado da estrada distante apenas duzentos metros do cemitério dos escravizados. Contudo, esse suposto distanciamento só foi possível pelo tombamento do cemitério como bem imóvel em 2008 pelo Conselho Municipal do Patrimônio Cultural (COMPAC) de Santa Luzia. Antes o projeto cortaria o cemitério ao meio dividindo a comunidade e descaracterizando toda a região, atualmente rural e com resquícios de mata atlântica. Além do projeto do Rodoanel, a comunidade já vem sendo ameaçada por uma proposta em tramitação em torno da aprovação de um condomínio também ao lado do cemitério que já conta com licenças aprovadas pelo município, mas que vem sendo barradas pelo COMPAC. O patrimônio tem sido utilizado como instrumento de luta pelo território junto à missa de finados, que além de momento de celebração da ancestralidade, representa um ritual de atualização das resistências em defesa da terra, das tradições, da sacralidade do lugar, e, sobretudo, em defesa da história do povo negro. Para compor a resistência tem sido discutido o processo de tombamento do ritual da missa como bem imaterial junto ao COMPAC. Contudo, esse processo tem enfrentado resistência da própria gestão municipal luziense alinhada ao governo do Estado em prol do Rodoanel. Com o início das obras previstas para 2024, Pinhões é apenas uma das comunidades afetadas pelo projeto de estrada que irá cortar onze municípios[1] da RMBH em seus cem quilômetros. Nessa disputa tem se formado alianças com atores de frentes distintas de atuação e defesa articuladas contra os impactos históricos da mineração no Estado de Minas Gerais e contra o que tem sido denominado de “Rodominério”. Populações atingidas pelos crimes da mineração como no rompimento das barragens de Fundão (Mariana – MG) e Córrego do Feijão (Brumadinho – MG) e as ameaçadas pelo rompimento como no caso da Mina de Gongo Soco (Barão de Cocais – MG), tem se juntado no Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) e se articulado a movimentos em defesa da Serra da Calçada, do Rola Moça, do Curral, da Moeda, entre outras, de sua fauna, flora, mas também dos sítios arqueológicos. Aliança que conta também com o projeto Manuelzão em defesa da biodiversidade e do abastecimento hídrico metropolitano e com a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Todos em defesa das comunidades tradicionais e indígenas na construção de uma plataforma política, social e ambiental ampla onde o capital não seja dominante sobre a dignidade da vida humana. Se o antropoceno enquanto conceito-diagnóstico (Svampa, 2018) tem servido para questionar o papel do Estado na produção e enfrentamento das crises socioecológicas, o caso de Minas Gerais é histórico para pensar a partir da relação com a mineração e a produção das cidades desde o período colonial. Estado maior produtor de minério de ferro do país – cerca de 60% da produção nacional (Centro de Estudos Avançados Quadrilátero Ferrífero, 2018) – e com relevante extração de outros minerais, tem sua formação diretamente vinculada à exploração de recursos minerários. A essa atividade se atrela diretamente o povoamento e surgimento de grandes cidades responsáveis pelo desenvolvimento da economia nacional e adensamento do interior do país, principalmente no que ficou conhecido como ciclo do ouro. Os crimes da Samarco e da Vale S.A. e as atividades de outras mineradoras que operam no estado e em território nacional – como no recente caso do crime da Braskem em Maceió – formatam lutas territoriais que nos revelam as desigualdades nas afetações e responsabilizações das injustiças socioambientais que marcam com maiores danos países do sul global, em termos econômicos, sociais, étnicos, geracionais e de gênero (Svampa, 2018). A relevância da luta territorial nos apresenta a experiência de comunidades historicamente marginalizadas e afetadas pelo racismo ambiental enquanto sujeitos políticos potentes para refletir sobre outro modelo de sociedade. E é nesse sentido que o quilombo de Pinhões e a rede de resistência construída contra o Rodoanel são representativos para pensar sobre narrativas e instrumentos mobilizados contra a relação entre o neoextrativismo e as práticas estatais na construção de políticas públicas. Em última instância, lutar contra o “Rodominério”, parafraseando o poeta e quilombola Nêgo Bispo que há pouco nos deixou, significa defender o que seria “extrair a vida da terra” e resistir àqueles que “expropriam a terra da vida”, pautando o direito à memória e a defesa da ancestralidade na disputa pela produção de cidades antirracistas. Bibliografia: CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS QUADRILÁTERO FERRÍFERO. “Quadrilátero Ferrífero”. Quadrilátero Ferrífero 2050 [online]. 2018. Disponível em: https://qfe2050.ufop.br/news/novidades MINAS GERAIS. Unidade de PPP. Concessões e Parcerias. Rodoanel. [Online]. 2018. Disponível em: http://www.ppp.mg.gov.br/projetos/projetos-em-estruturacao/rodoanel SVAMPA, Maristella. El Antropoceno como diagnóstico y paradigma. Lecturas globales desde el Sur. Utopía e Praxis Latinoamericana, vol. 24, no. 84, p. 1-30. [1] Considerado o aeroporto indústria nacional é administrado pelo consórcio privado BH Airport (formado pelo grupo latino-americano CCR e pelo operador aeroportuário suíço Zürich Airport, com concessão por trinta anos iniciada em 2013). O aeroporto está localizado no município de Confins (RMBH) e tem a proposta de ser a porta nacional de entrada de mercadorias e equipamentos de grande porte para a atividade industrial. Como exemplo, as peças trazidas pela aeronave Antonov An-124 (aeronave russa segunda maior do mundo no transporte de cargas à época) em 2021, para a mineradora Anglo American e a grande operação logística metropolitana montada para o trânsito das peças. [2] A comunidade localiza-se em uma região que no século XVIII representava limites fronteiriços entre as sesmarias de Bicas e Macaúbas. Essa última à época passava por repartições, o que por receio de invasões levou o dono da sesmaria de Bicas a povoar suas terras, nascendo daí a comunidade quilombola. Na região antes pertencente à sesmaria das Macaúbas localiza-se hoje um convento de mesmo nome construído naquele mesmo século tendo grande prestígio por abrigar filhas da elite mineira como as de Chica da Silva. [3] Composta por quatro alças (norte, oeste, sudoeste e sul) a rodovia irá cortar os municípios de Belo Horizonte, Betim, Contagem, Ibirité, Nova Lima, Pedro Leopoldo, Ribeirão das Neves, Sabará, Santa Luzia, São José da Lapa e Vespasiano.
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