Gustavo de Queiroz, doutorando em sociologia pelo Iesp-Uerj e integrante do grupo Casa
Diz o ditado que o ano só começa no Brasil depois que o carnaval acabar-se nas cinzas da quarta-feira. Pois bem, a fim de manter a tradição, nada melhor que aproveitar o início da quaresma cristã para retornar aos nossos ensaios no Terça de Casa. Em 2023, finalmente, após dois longos anos de sucessivas quarentenas, graças ao intenso trabalho dos funcionários do SUS e à vacinação em massa da população brasileira, o carnaval, com todo o seu brilho e esplendor, retornou às ruas, praças e avenidas, não só do Rio de Janeiro, mas de todo Brasil. Os bons leitores, de memória atenta, podem me interpelar e afirmar que os carnavais nunca cessaram na boêmia cidade do Rio de Janeiro, mesmo durante as mais duras quarentenas. Indo além, fazendo jus a sua memória, podem também lembrar-me de meu ensaio de abril de 2022, também para o Terça de Casa, em que escrevo sobre os dois carnavais que agitaram a cidade no ano que passou. De fato, tivemos carnavais pelas ruas do Rio em 2022, porém, a pândega se restringiu. Para além das festas fechadas em clubes, boates e salões, o carnaval resumiu-se a alguns blocos, que se cobriram sob o véu da clandestinidade, e aos desfiles das escolas de samba, que foram adiados para o mês de abril, entre os feriados de Tiradentes e São Jorge. Neste carnaval de 2023, no entanto, ninguém marcou bobeira e os cariocas carnavalizaram a cidade de São Sebastião, desde a tradicional abertura não oficial do festejo, no primeiro domingo de janeiro, até depois da quarta-feira de cinzas, no mais tardar de fevereiro, para horror dos beatos. Quem pegasse um trem parador Central, em Deodoro, com um ouvido bastante atento, talvez escutasse o samba que encantava a Avenida Ernani Cardoso, pois as escolas de samba das séries B, Prata e Bronze fizeram seu carnaval de 2023 na Nova Intendente Magalhães, inaugurada neste ano no bairro de Cascadura. A quem continuasse chacoalhando até a Estação Central do Brasil, seria impossível não reparar que, logo ali no Canal do Mangue, entre o Balança Mais Não Cai[1] e os Correios, concentrava-se alas, alegorias, passistas e bateria para a maior festa do planeta. Sacudindo e colorindo o concreto-armado do Sambódromo da Marquês de Sapucaí, prestes a completar 50 anos, as comunidades das escolas de samba do Grupo Especial e da Série A apresentaram sua arte para o mundo e fizeram festa da noite de sexta-feira até o clarear da terça-feira, para além do Sábado das Campeãs. Contudo, quem por desventura não fosse a Sapucaí ou a Intendente Magalhães, facilmente encontraria felicidade em uns dos 456 blocos que fizeram as ruas do Rio cantar repletas de purpurina. Este ano, o Rio voltou a ter blocos de todos os tipos: préstitos e parados, centenários e recém nascidos, com instrumentos de sopro ou trio elétricos, oficiais e piratas, de multidões ou familiares. Na Avenida Chile, junto aos blocos afro, o Cacique de Ramos retornou a festejar na palma da mão, caciqueando noite adentro pela avenida. Quem tomou rumo à Cinelândia encontrou mais de mil bate-bolas no salão a céu aberto que transformou a praça, pois ali fez-se palco de concursos de fantasia. Aos fãs de multidões, o mais que centenário Cordão do Bola Preta voltou ao Centro do Rio e fez um milhão de pessoas cantarem que “lugar quente é na cama ou então no Bola Preta”. Um outro 1 milhão de pessoas correu atrás do trio elétrico do Fervo da Lud, que apesar de recente no carnaval da cidade, já disputa e empata em público com o mais tradicional cordão carioca. Assim, após um ano de uma folia tímida e fora de época, o Rei Momo retornou a imperar nas ruas, avenidas e praças do Rio de Janeiro, com seus súditos embebidos por arte e tradição. É curioso pensar que para o senso comum, o carnaval acaba por ser sinônimo de caos e loucura e, mesmo para as ciências sociais brasileiras, por um bom tempo, o carnaval carioca foi caracterizado como um período de inversão das regras e hierarquias sociais, cuja função social seria, através da inversão da moral, a afirmação da ordem cotidiana. No entanto, os mil carnavais do Rio de Janeiro, mesmo com todas as suas diferenças de formas e ritmos, têm, ao longo da história da cidade, demonstrado ser manifestações artísticas complexas, que englobam o trabalho coletivo de diversos artistas, para além de detentoras de uma capacidade incrivelmente agregadora na vida social da cidade. Indo muito além dos carnavais, boa parte das instituições carnavalescas, isso é, escolas de samba, blocos, cordões e bate-bolas, têm uma vida cotidiana bastante ativa ao longo de todo ano, entre ensaios, feijoadas, oficinas, barracões, disputas de samba-enredo, aulas de percussão, que não só marcam o ritmo e a ordem da vida social das instituições e suas comunidades, mas da cidade do Rio de Janeiro. Algumas das instituições sociais mais antigas e tradicionais cariocas, cuja história confunde-se com a história da cidade, são grupos carnavalescos, como os centenários Cordão do Bola Preta e G.R.E.S Portela. No Sambódromo, a centenária Águia da Portela, ao conduzir a velha-guarda de Oswaldo Cruz e Madureira, lembrava aos foliões da Sapucaí, toda magnitude da capacidade artística, social, econômica e política do carnaval negro das escolas de samba, que por 100 anos vêm, com samba, fantasias e uma dinâmica rede de sociabilidade e trocas culturais entre os moradores e artistas, provando que os carnavais cariocas vão muito além que quatro dias de folia. Ao invés de enquadrar o carnaval na velha dicotomia entre caos e ordem, prefiro salientar como a festa vem sendo um momento da vida social de criação e reprodução de valores e sentidos para os cariocas, como os mil carnavais cariocas vêm produzindo cidade, práticas, identidades e territorialidades urbanas (O'DONNELL, ROCHA DE OLIVEIRA, 2021). Bibliografia: OLIVEIRA, A. P. R. DE; O’DONNELL, J. G. O Melhor Espetáculo da Terra: Crise e Regulação no Carnaval de Rua do Rio de Janeiro. Antropolítica - Revista Contemporânea de Antropologia, n. 52, 4 ago. 2021. [1] Famoso prédio de moradia popular localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro.
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